Sem amarras e sem normas: a colisão do navio São Luís e a inexistente regulamentação para navios abandonados no Brasil
Caroline Gomes Bohrer é Mestre em Estudos Marítimos pela Escola de Guerra Naval da Marinha do Brasil – EGN e pesquisadora na Linha de Pesquisa de Meio Ambiente Marítimo do Laboratório de Simulações e Cenários – LSC da EGN
Rafael Zelesco Barretto é doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor adjunto do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval
Na noite de 14 de novembro de 2022, uma embarcação que estava abandonada desde fevereiro de 2016 na Baía de Guanabara se desprendeu de onde estava fundeada, ficou à deriva e colidiu com a ponte Rio-Niterói. A Capitania dos Portos do Rio de Janeiro enviou uma equipe de busca e salvamento ao local, de onde o navio foi encaminhado para atracação no Porto do Rio de Janeiro.
Esse acidente levou ao total fechamento da ponte Rio-Niterói (que é muito movimentada diariamente) por cerca de 16 horas, até que as autoridades considerassem seguro o retorno de todas as pistas para o tráfego no local. Segundo nota oficial emitida pela Marinha do Brasil, o navio, de nome “São Luís”, está pendente de processo judicial, e estava fundeado na Baía de Guanabara há seis anos em área previamente determinada pela Autoridade Marítima.
Situações como essa demonstram a gravidade representada pelos navios abandonados, cujo potencial de gerar danos não se limita a colisões – uma embarcação abandonada traz prejuízos ao meio ambiente marinho, à economia local, à segurança da navegação e à vida humana. Embora a Baía de Guanabara tenha se tornado um conhecido “cemitério de navios”, ou seja, local onde se concentram diversas embarcações abandonadas, a solução para este cenário carece de respaldo legal. Ao contrário de outros países, como o Canadá, o Brasil possui legislação esparsa aplicável à responsabilização por danos causados por embarcações abandonadas, e não possui nenhuma lei que trate do tema de forma direta.
O maior respaldo jurídico nacional para a atuação estatal nessas situações é a Lei nº 7.542, de 1986, que trata sobre coisas ou bens afundados, submersos, encalhados ou perdidos nas águas nacionais. Apesar de uma embarcação abandonada possivelmente estar em algumas dessas circunstâncias, o abandono não necessariamente é consequência de encalhe ou acidente, e um navio pode ser abandonado sem estar afundado ou submerso (é comum, inclusive, que navios sejam abandonados em razão de pendências tributárias e judiciais, como foi o caso do “São Luís”). Nesse sentido, a referida norma não faz nenhuma menção específica ao abandono de navios, nem à responsabilização por eventuais danos ambientais ou materiais que essa situação em particular tipicamente gera.
Não suficiente, a lei em discussão prevê um extenso prazo de 5 (cinco) anos para que a Autoridade Marítima possa considerar que ocorreu perda de propriedade caso nenhum interessado pelo navio afundado, submerso, encalhado ou perdido se manifeste. Aplicando-se essalógica ao navio abandonado, a Autoridade Marítima só poderia considerá-lo como tal após o decurso de 5 (cinco) anos. Além disso, a norma é vaga ao tratar da responsabilidade por eventuais danos causados pelo navio, trazendo o termo “responsável”, de forma abstrata, sem direcionar essa responsabilidade ao proprietário ou ao armador, ou a ambos em solidariedade.
Internacionalmente, o tema do abandono de navios já foi debatido pela Organização Marítima Internacional, mas sem que nenhuma postura obrigatória fosse exigida dos países. Em 2007, surgiu a Convenção de Nairobi, que visa regular a remoção de navios naufragados, e responsabiliza o proprietário da embarcação em caso de acidente marítimo. Contudo, ela não trata especificamente do abandono de navio, e não foi ratificada pelo Brasil.
Por fim, cumpre esclarecer que a falta de respaldo legal nesse cenário contribui para a dificuldade de atuação prática frente aos cemitérios de navios. A legislação é vaga ao atribuir responsabilidade por danos causados pelo navio abandonado, e o Brasil não dispõe de centro próprio de reciclagem de embarcações. Com base nisso, atualmente tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 1.584/21, o qual visa regulamentar a reciclagem de navios e plataformas no Brasil, propondo regras para seu desmonte e reutilização de peças, a fim de dar destinação às embarcações abandonadas. Entretanto, esse Projeto destina-se principalmente aos navios e plataformas de petróleo que são levados à reciclagem por seus responsáveis. A única menção que faz aos barcos abandonados mantém o exagerado prazo de 5 anos de permanência no mesmo local, findo o qual a autoridade marítima deverá intimar o responsável (que dificilmente será encontrado em pouco tempo) para promover a reciclagem do navio. Caso contrário, o Projeto se limita a fazer referência aos poderes normais de apreensão no exercício do poder de polícia.
Faz falta uma legislação nacional que estabeleça um prazo de dias, não de anos, a partir do qual o navio será considerado abandonado. Isto posto, é necessário que a autoridade marítima esteja legalmente respaldada para, após tentativa mínima de encontrar o responsável pela embarcação, remover a mesma para onde entender adequado, sem precisar provar algum risco especial à segurança da navegação ou ao meio ambiente marinho(ver item 0408 da NORMAM 8). Finalmente, a legislação deve prever consequências administrativas e cíveis para os responsáveis pela embarcação.