Uma oitava ilha artificial chinesa?
Um dos mais controversos, complexos, e desafiadores problemas geopolíticos que o mundo atualmente enfrenta é a disputa acontecendo no Mar do Sul da China.[1] O ponto crucial da disputa se centra na soberania sobre vários elementos marítimos na área e potenciais direitos a zonas marítimas que esses elementos gerariam.[2] Como a região possui um enorme potencial econômico, devido à grande quantia estimada de gás natural e petróleo inexplorado e à sua importância enquanto um centro de rotas marítimas[3], se torna ainda mais crucial para os Estados interessados exercer soberania sobre o maior número possível de ilhas, e, consequentemente, possuir os maiores direitos marítimos possíveis sobre a área.
Em 2009, a China surpreendeu observadores regionais ao submeter para as Nações Unidas o mapa chamado linha-de-nove-traços [nine-dash-line], no qual clama quase 90% do Mar do Sul da China.[4]
Fonte: BBC/ UNCLOS, CIA.
As reivindicações de soberania da China são baseadas em uma combinação bizantina de uso e descobertas históricas e cessões de poderes coloniais, que o Estado tem tentado fortalecer através de uma ocupação efetiva.[5] Para executar essa ocupação, a China tem desde 2013 lançado um programa de construção de ilhas, no qual ela transforma vários elementos, incluindo pequenos baixios a descobertos e recifes, em ilhas artificias, incluindo algumas militarizadas.[6]
Em 2016, após ser requisitada para apreciar a situação sob a luz do direito aplicável, a Corte Permanente de Arbitragem decidiu em favor das Filipinas contra as reivindicações chinesas relativas aos territórios disputados no Mar do Sul da China.[7] A Corte foi requerida, inter alia, a determinar se certos elementos, incluindo as ilhas artificias da China, seriam baixios a descobertos, nos termos do Artigo 13 da CONVEMAR, ou ilhas conforme o Artigo 121(1). Por um lado, sob o regime do artigo 121(1), ilhas possuem uma plataforma continental e uma ZEE própria, enquanto, por outro, baixios a descobertos, não. Diante disso, a Corte concluiu que:
“the status of a feature is to be evaluated on the basis of its natural condition as a matter of law, human modification cannot change the seabed into a low-tide elevation or a low-tide elevation into an island. A low-tide elevation will remain a low-tide elevation under the Convention, regardless of the scale of the island or installation built atop it”[8]
Em outras palavras, a Corte afirmou que qualquer seja a modificação que é aplicada em um elemento marítimo, esse elemento deve ser avaliado em concordância com sua forma natural. Na prática, isso significa que elementos modificados seriam “avaliados com base em sua condição antiga e natural, anterior ao início da modificação humana significativa (tradução nossa)”[9]. Ademais, a Corte iria “chegar na sua decisão com base na melhor evidência disponível do status prévio do que agora são corais de recife fortemente modificados (tradução nossa)”[10].
Por exemplo, quando analisando o Fiery Cross Reef, o Tribunal reconheceu que as instalações no elemento incluíam “uma pista de três quilômetros, um porto de 630.000 metros quadrados, várias fábricas de cimento, edifícios de apoio, cais de carregamento temporário, instalações de comunicação, equipamento de defesa, dois faróis, uma estufa, dois helipontos e uma instalação administrativa de vários níveis adjacente à pista (tradução nossa)”. No entanto, se baseando em pesquisas e gráficos marítimos antigos, ela entendeu que o Fiery Cross Reef era em sua condição natural uma rocha, que, apesar de tudo, continuaria sendo seu status legal.[11]
Há quem argumente que a lógica aplicada pela Corte constituiria uma ficção legal que favorece uma inverdade, em detrimento da verdade.[12] Isso seria porque a condição fática original dos elementos não seria uma verdadeira base factual sob a qual outras regras legais poderiam serem “razoavelmente aplicadas (tradução nossa)”[13]. Nesse sentido, Lewis aponta que a ficção criada pela Corte, embora seja baseada em boas razões, possui supostas consequências negativas, como por exemplo a falta de praticidade de se usar a linha de base original de um elemento para determinar os direitos e as obrigações que emanam deste, quando já não é mais possível identificá-la após a transformação artificial.
Além disso, a China mantém a posição de que o Laudo foi nulo e sem nenhum efeito legal.[14] Em 2017, a Sociedade Chinesa de Direito Internacional (CSIL) publicou um tratado de 500 páginas intitulado “The South China Sea Arbitration Awards: A Critical Study”, no qual argumentou que a decisão emitida pelo Tribunal Arbitral do Mar do Sul da China foi errônea.[15] Apesar da posição da China, a decisão da Corte é vinculante dentro do Direito Internacional e possui efeitos sobre o regime marinho da região.
Desde 2016, parece que a China, no entanto, tem cumprido parcialmente com a decisão, embora ela não tenha abandonado suas ilhas artificiais, nem tenha renunciado as suas reivindicações ao território dentro da Linha-de-Nove-Traços.[16] Entretanto, recentemente, em Abril, o Governo das Filipinas percebeu a presença de uma nova estrutura que seria supostamente uma oitava ilha artificial chinesa na ZEE das Filipinas.[17] Suponhamos que a China realmente insista em manter suas atividades de construção de ilhas artificiais na ZEE Filipina. Nesse caso, a comunidade internacional iria certamente ter um problema no campo do direito internacional do mar, já que o resto do mundo, incluindo os Estados Unidos[18], têm fortemente apoiado a decisão da CPA em consonância com a CONVEMAR, condenando assim as atividades chinesas.
Em conclusão, a nova estratégia chinesa no Mar do Sul da China demonstra que talvez o Governo chinês ainda esteja focado em expandir seu programa de ilhas artificiais. Entretanto, conforme discutido acima, a modificação artificial de um baixio a descoberto em uma ilha não é relevante para a interpretação dada pela CPA perante o regime da CONVEMAR, uma vez que estes elementos devem ser interpretados em sua forma original. Nesse sentido, independente da discussão relativa à legalidade das iniciativas chinesas, parece que para o direito internacional, elas podem acabar não tendo o efeito esperado de expandir a soberania chinesa na região, através de novos direitos marítimos que surgiriam destas ilhas artificias, já que, inobstante o quão modificados elas sejam, seu status legal continuaria sendo o mesmo.
Por Augusto Guimarães Carrijo, graduando em Direito na Universidade Federal de Uberlândia, sob a orientação do Dr. Felipe Kern Moreira, diretor do IBDMAR
[1] LEWIS, Reece. International Legal Fictions: Lessons from the South China Sea Award. Asian Journal of International Law, pp. 1-20, 2021.
[2] LEWIS, Reece. International Legal Fictions: Lessons from the South China Sea Award. Asian Journal of International Law, pp. 1-20, 2021.
[3] FAKHOURY, Renato. As disputas marítimas no Mar do Sul da China: Antecedentes e Ações militares no século XXI. Observatório de Conflitos Internacionais, v. 6, n. 1, 2019.
[4] BRANDS, Hal; COOPER; Zack. Getting serious about strategy in the South China Sea. Naval War College Review, v. 71, n. 1, pp. 12-32, 2018.
[5] DAVENPORT, Tara. Island-Buildings in the South China Sea. Asian Journal of International Law, pp. 76-90, 2018. Ademais, para uma discussão detalhada sobre as disputas de soberania, veja: Christopher C. JOYNER, “The Spratly Islands Dispute: Rethinking the Interplay of Law, Diplomacy and Geopolitics in the South China Sea” (1998) 13 International Journal of Marine and Coastal Law 193.
[6] Relativo à transformação dos elementos, veja: Asia Maritime Transparency Initiative [AMTI], “Occupation and
Island Building”, online: AMTI https://amti.csis.org/island-tracker/. Apud LEWIS, Reece. International Legal Fictions: Lessons from the South China Sea Award. Asian Journal of International Law, pp. 1-20, 2021. Footnote 58.
[7] ZHAO, Suisheng. China and the South China Sea Arbitration: Geopolitics Versus International Law. Journal of Contemporary China, v. 27, n. 109, pp. 1-15, 2017.
[8] PCA. South China Sea Arbitration (Philippines v. China). Award on Jurisdiction and Admissibility of 29 October 2015. Available at: https://pcacases.com/web/sendAttach/2579. Para. 305
[9] Ibid., para. 306.
[10] Ibidem
[11] LEWIS, Reece. International Legal Fictions: Lessons from the South China Sea Award. Asian Journal of International Law, pp. 1-20, 2021. P. 11
[12] Ibid., p. 12.
[13] Ibidem
[14] SAKAMOTO, Shigeki. The Global South China Sea Issue. The Diplomat. Tokyo, 04 Jul. 2021. Available at: https://thediplomat.com/2021/07/the-global-south-china-sea-issue/.
[15] THAO, Nguyen Hong; HUONG Nguyen Thi Lan. The South China Sea Arbitration Award: 5 years and beyond. The Diplomat. Tokyo, 12 Jul. 2021. Available at: https://thediplomat.com/2021/07/the-south-china-sea-arbitration-award-5-years-and-beyond/
[16] GOLDENZIEL, Jill. Here’s why China Is Afraid Of An Obscure International Court. Forbes. United States, 19 Jul. 2021. Available at: https://www.forbes.com/sites/jillgoldenziel/2021/07/19/heres-why-china-is-afraid-of-an-obscure-international-court/?sh=1b4ebddd3d8c.
[17] SAKAMOTO, Shigeki. The Global South China Sea Issue. The Diplomat. Tokyo, 04 Jul. 2021. Available at: https://thediplomat.com/2021/07/the-global-south-china-sea-issue/.
[18] Os Estados Unidos, no entanto, não ratificaram a Convenção. O senado estadunidense ainda não chegou na maioria de dois terços necessária para tal ratificação, apesar dos pedidos feitos pelos presidentes Clinton. Bush e Obama em favor da aprovação. A maioria dos que argumentam contra a ratificação continuam a criticar os termos do regime de mineração do fundo do mar baseados em uma preocupação única do Presidente Reagan rejeitando o tratado 22 anos atrás. Isso faz com que a posição deles seja um pouco contraditória no problema do Mar do Sul da China. Veja: MIRASOLA, Christopher. Why the US should Ratify UNCLOS: A view from the South and East China Seas. Harvard Law School National Security Journal. Available at: https://harvardnsj.org/2015/03/why-the-us-should-ratify-unclos-a-view-from-the-south-and-east-china-seas/.