O Inverno do Nosso Descontentamento
Por Bruno Costelini
Oceanógrafo pelo CEM/UFPR e doutorando em Direito na Universidade de Durham, Reino Unido
Now is the winter of our discontent
Made glorious summer by this sun of York;
And all the clouds that lour’d upon our house
In the deep bosom of the ocean buried.[1]
As primeiras falas de Ricardo III, de Shakespeare, representam uma transição de poder na Inglaterra. Enunciadas por Ricardo, o irmão corcunda de Eduardo (o sol/filho de York, que acabara de reascender ao trono), elas escondem seu ímpeto traiçoeiro, pois apenas algumas falas mais tarde ele confessa sua intenção de derrubar o rei, matar seu outro irmão, prender os jovens sobrinhos na Torre de Londres e finalmente assumir a coroa. No curso da peça, Ricardo consegue levar seu plano a cabo, conspirando e enganando as pessoas ao seu redor. Antes do final, contudo, o destino o alcança, ele cai de se seu cavalo e morre, na Batalha de Bosworth.
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Essa semana vimos a publicação do mais recente relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) sobre a situação do nosso clima. Essa é apenas a primeira parte do Sexto Ciclo de Avaliação, feita pelo Grupo de Trabalho I, tratando dos elementos físicos-científicos que embasarão os relatórios subsequentes, a serem publicados até 2022. Dessa forma, ele sintetiza o estado da arte da ciência e as crescentes evidências que explicam o continuo aumento das temperaturas ao redor do planeta, ontem, hoje e no futuro.
O relatório apresenta algumas conclusões terríveis, começando pelo fato agora inescapável (“inequívoco”) de que o aquecimento é induzido pelas atividades humanas, e numa taxa “sem precedentes nos últimos 2000 anos”, sendo que a emissão de gases de efeito estufa são o principal indutor “desde ao menos 1750”, alcançando hoje o nível de 410 ppm para o CO2. Com relação ao oceano, o relatório estabelece que é virtualmente certo que sua camada superior (0-700m) vem aquecendo desde 1970 devido à intrusão do dióxido de carbono, levando a níveis de oxigenação mais baixos, a um aumento no nível do mar hoje numa taxa de 3,7mm por ano, e a níveis de pH superficiais “incomuns nos últimos 2 milhões de anos”.[2]
E pior, até nos cenários mais otimistas para as próximas décadas, o relatório prevê o aumento contínuo nas temperaturas, de ao menos 1,6 Celsius para o período de 2041 a 2060, ou até 2,4 °C nas piores estimativas. Para o período de 2081 a 2100, os cenários vão de 1,4 °C a 4,4 °C, de acordo com as estimativas mais acuradas. Assim, mesmo que atitudes imediatas sejam tomadas e as emissões sejam reduzidas drasticamente, os efeitos do que já foi feito até agora continuarão a serem sentidos.
Muitas das mudanças já são consideradas irreversíveis, “por séculos a milênios”, incluindo novamente o aquecimento dos oceanos, o que tem levado à estratificação da camada superior, acidificação e desoxigenação. O nível médio global do mar em 2100 pode aumentar de 0,28 a 0,55mm no melhor cenário, ou até 2 metros no pior (chegando a 5 metros até 2150), devido não apenas à expansão térmica, mas também ao derretimento das geleiras.
Numa nota otimista, o relatório diz que não é tarde demais para mitigar alguns dos impactos, apresentando os resultados positivos de se reduzir e remover emissões de CO2 e de outros gases de efeito estufa. Isso poderia melhorar não só a qualidade do ar, como também influir nas tendências de aumento do nível do mar, cujos efeitos seriam sentidos no médio a longo prazo.
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Assim como a corte de Londres ou as plateias da peça de Shakespeare, por décadas nós fomos alvo dos discursos sedutores e traiçoeiros da economia dos combustíveis fósseis, extraindo e queimando petróleo como se não houvesse amanhã. Encarnando seu Ricardo III interior, as industrias que lucraram dessas atividades mascararam suas intenções e esconderam fatos conhecidos sobre a acumulação de efeitos das emissões de gases na atmosfera.[3]
Mas há umas duas ou três décadas, o jogo começou a virar. O vilão mostrou sua verdadeira face e estamos sendo forçados a encarar os mais duros fatos e suas consequências. Chegamos a nossa Batalha de Bosworth, então é a hora de abandonar nossa simpatia pelo personagem dúbio que insiste em se segurar a um cavalo, oferecendo seu reino por ele. “Temos agora o inverno do nosso descontentamento”, e só cabe a nós transformá-lo num verão glorioso, esperando que “as nuvens enterradas no fundo do coração do oceano” lá permaneçam.
Imagem de Capa: An aerial view shows a wildfire in Yakutia, Russia. Disponível em: https://edition.cnn.com/2021/07/22/world/wildfires-siberia-us-canada-climate-intl/index.html
[1] William Shakespeare, Ricardo III, Ato I, Cena I
Na tradução de Beatriz Viégas-Faria (L&PM): “Temos agora o inverno do nosso descontentamento transformado em verão glorioso por esse astro rei de York ; e todas as nuvens que pesaram sobre nossa Casa estão enterradas no fundo do coração do oceano.”
[2] Todas as citações ao relatório do IPCC são traduções nossas do original “Climate Change 2021, The Physical Science Basis, Summary for Policymakers” disponível em https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg1/downloads/report/IPCC_AR6_WGI_SPM.pdf
[3] Ver, por exemplo, Naomi Oreskes and Erik M Conway’s ‘Merchants of Doubt: How a Handful of Scientists Obscured the Truth on Issues from Tobacco Smoke to Global Warming’ (Bloomsbury, 2010).