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06 abril 2021

Surfando na Incerteza

Por Bruno Costelini

Oceanógrafo e doutorando em Direito pela Universidade de Durham, Reino Unido

 

A consciência humana é uma das questões filosóficas mais intrigantes que ainda estão por ser resolvidas. Como um agregado de moléculas pode alcançar um nível de complexidade tão grande a ponto de começar a pensar sobre si mesmo, contemplar sua própria existência e os mecanismos internos que possibilitam essa contemplação? A pergunta tem nos cismado desde muito tempo e está longe de ser algo trivial ou exótico, uma vez que faz parte de sabermos quem somos e como devemos agir em nossa breve passagem por esse planeta.

 

Médicos e outros cientistas vêm tentando responder com experimentos como tirar pedaços do tecido cerebral e joga-los num microscópio, ou então analisando a atividade craniana em tempo real por meio de eletroencefalogramas, e mais recentemente se associando com cientistas da computação para criar simulações e até duplicar cérebros inteiros artificialmente em busca de replicar a mente humana. Mas até agora sem grande êxito.

 

A resposta ainda permanece nas mãos dos filósofos, ou seja, observadores experimentados que especulam sobre os mecanismos de maneira puramente teórica ou até mesmo matemática. A tradição é extensa, indo desde os gregos, mas mais modernamente passando por Descartes e Locke, para ficar no âmbito ocidental. Contemporaneamente, uma linha de pensamento tem surgido que talvez tenha chegado mais perto de acertar o alvo na cabeça (trocadilho inevitável).

 

O livro de Andy Clark ‘Surfing Uncertainty: Prediction, Action and the Embodied Mind’ (Oxford University Press, 2016 – ainda sem tradução para o português), é uma grande contribuição para essa linha. Clark é professor de Filosofia Cognitiva na Universidade de Sussex e tem trabalhado intensivamente para entender como a mente se conecta com o ambiente ao seu redor de maneira a compreendê-lo e compreender a si mesma. Ele propõe que a chave está em uma palavra: predição.

 

Num mundo cheio de incertezas, onde coisas acontecem o tempo todo fora do nosso controle, o motivo pelo qual o cérebro foi formado é para tentar antever esses acontecimentos e dar forma às nossas ações em resposta a eles. Assim, desde atitudes simples como levantar um braço, até mais complexas ou grandes decisões como se casar, o que nosso cérebro está fazendo é calcular como o ambiente vai se comportar, seja por meio de suas leis físicas (como a gravidade) ou biológicas, como ao assegurar o sucesso de nossa dispersão genética. Clark usa uma bela metáfora oceânica para explicar melhor seu ponto:

 

Um surfista experiente fica ‘in the pocket’: próximo, mas ligeiramente à frente da região onde a onda está quebrando. Isso proporciona tração e, quando a onda quebra, garante que não a atinja. A tarefa do cérebro não é diferente. Ao tentar prever constantemente a próxima percepção sensorial nos tornamos capazes […] de aprender sobre o mundo a nossa volta e envolver esse mundo em pensamento e ações.  Predições bem sucedidas e que de fato engajam com o mundo não são fáceis. […] Mas uma vez que se acerte, agentes ativos são capazes tanto de conhecer como de se engajar com seus mundos, surfando seguramente onda após onda de estímulos sensitivos.[1] [tradução minha]

 

Mas para além do surfe, o que tudo isso tem a ver com o mar ou com nossas preocupações mais imediatas aqui como cientistas ou juristas do mar? Bem, acontece que a Ciência e o Direito são ambos estruturas sociais extremamente elaboradas, desenvolvidas por uma porção de cérebros em conjunto, ao longo do tempo, para nos ajudar a reduzir a complexidade do ambiente ao nosso redor e permitir cálculos e ações melhores e mais otimizadas. Se tudo o que nossos cérebros (e corpos) fazem é predizer o mundo à nossa volta e agir de acordo, não é nenhuma surpresa que que em alguma altura de nosso desenvolvimento a necessidade de elementos coletivos como o Direito e a Ciência tenha surgido.

 

Isso não é exatamente novidade, como qualquer cientista social das últimas décadas terá notado, seja pela abordagem de sistemas ou funcional, como metáforas com organismos para instituições sociais são abundantes. Mas de fato ligar aquela teoria filosófica e colocar a predição no centro de tudo faz sentido não apenas por ser uma maneira perspicaz de entender o funcionamento da mente humana e das instituições sociais. A autoconsciência que deriva desse entendimento pode de fato melhorar as próprias predições.

 

Quando Descartes virou sua atenção para a mente humana ele arriscou colocar toda uma tradição filosófica num caminho excessivamente antropocêntrico, em que auto-absorção e auto-importância reinariam. Mas felizmente naquela mesma época (a primeira metade do século XVII) Copérnico e outros astrônomos e cientistas estavam fazendo umas observações bem interessantes que tirariam a Terra do centro do palco, escancarando nossa insignificância no grande plano das coisas.

 

O que a teoria de Clark e várias outras descobertas recentes da Ciência Cognitiva nos ensinam é que precisamos manter o esforço de equilíbrio. Nem a Ciência nem o Direito podem proporcionar respostas definitivas sobre nossas questões individuais ou coletivas. Mas eles são elementos-chave em nossa constante luta para predizer e reagir a nosso ambiente, tanto como indivíduos como sociedade. Ao ignorar qualquer um dos dois arriscamos fazer nossas piores previsões e tomar péssimas decisões.

 

[1] No original : “A skilled surfer stays ‘in the pocket’: close to, yet just ahead of the place where the wave is breaking. This provides power and, when the wave breaks, it does not catch her. The brain’s task is not dissimilar. By constantly attempting to predict the incoming sensory signal we become able […] to learn about the world around us and to engage that world in thought and action. Successful, world-engaging prediction is not easy. […] But get it right, and active agents can both know and behaviourally engage their worlds, safely riding wave upon wave of sensory stimulation.”

 

Andy Clark, Surfing Uncertainty: Prediction, Action, and the Embodied Mind, Oxford University Press, 2016.

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