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23 julho 2020

Uma História Nada Secreta

Por Bruno Costelini
Oceanógrafo pelo CEM/UFPR e doutorando em Direito na Universidade de Durham


A pausa forçada no cotidiano proporcionada pela pandemia traz a oportunidade de encarar aqueles volumes mais caudalosos e analíticos, que há tempos deixávamos de lado, por não responder as questões mais imediatas de nossos objetos de estudo. No caso deste colunista, que costuma se preocupar com assuntos de ciência e direito do mar, isso significa uma chance de explorar seu aspecto histórico, adicionando uma dimensão de maior profundidade na análise das forças que ligam esses temas.

Começo esse mergulho (que deverá continuar nas próximas colunas) pelo novo livro de Helen M. Rozwadowski, Vast Expanses: A History of the Oceans [Vastas Extensões: Uma História dos Oceanos, em tradução livre], publicado em 2018 pela britânica Reaktion Books.

Embora breve (268 páginas nessa primeira edição), o volume é ambicioso em sua cobertura temporal e disciplinar. Rozwadowski sintetiza as últimas descobertas da paleontologia, da arqueologia, da antropologia, da história da ciência, da oceanografia e do direito, além de demonstrar um amplo conhecimento da literatura e das artes em suas representações dos oceanos.

Enquanto muitos historiadores se restringem ao período propriamente referenciável por fontes escritas, dos últimos cinco mil anos, aqui os dois primeiros capítulos nos lembram que os oceanos de fato fazem parte do planeta há 4 bilhões de anos e passaram por mudanças drásticas ao longo de processos que vão do surgimento da vida (a “sopa primordial”) e sua posterior explosão evolutiva do cambriano, extinções em massa e, finalmente, há um par de milhões de anos, o aparecimento dos primeiros hominídeos, nossos ancestrais que, como nós, já mantinham proximidade regular com suas águas.

Evidentemente, é a experiência humana com os oceanos que ocupa o centro de nossas atenções, antropocêntricos que somos, mas essa tampouco tem início com os alfabetizados fenícios. Já há algumas dezenas de milhares de anos foi através da navegação que conquistamos as ilhas do Pacífico e mais à frente a América, desenvolvendo para tanto toda a tecnologia e o conhecimento de navegação necessários.

Ao longo dos séculos e milênios que se seguiram, Rozwadowski argumenta, essa relação esteve sobremaneira restrita à superfície e às costas, tendo nas pescarias e no mergulho em pequenas profundidades o único contato com o leito. O conhecimento e a representação da dimensão vertical dos oceanos exigiriam um desenvolvimento posterior, a ciência moderna. Isso não impediu, contudo, que nossa imaginação trabalhasse inventando monstros marinhos e utopias que desse conta de preencher o desconhecido.

A conquista dos oceanos pelos europeus que, a partir do século XV, atravessaram o Atlântico e o Índico, ampliou os horizontes e foi mesmo determinante para a elaboração do método científico, por Copérnico e Bacon. As imbricações entre as primeiras instituições científicas (a Royal Society), os primeiros cruzeiros de naturalistas (o Endeavour de James Cook) e as primeiras instituições legais de regulação dos oceanos (o conceito de mare liberum cunhado por Hugo Grotius para permitir a navegação irrestrita em alto mar) são todas conectadas, segundo Rozwadowski, por um mesmo empreendimento de conquista da natureza.

O projeto se seguiria pelos séculos seguintes, de maneira cada vez mais institucionalizada, sob os auspícios dos nascente Estados, que buscavam ampliar os limites de sua atuação para além do território seco, abrindo novas fronteiras de exploração.

Esse mesmo ímpeto, ela identifica na literatura e nas artes, que cada vez mais romantizavam e dramatizavam a conquista dos oceanos, com piratas e tesouros perdidos, aventuras por mares longínquos, cenas de naufrágios e marinhas. Até mesmo o comportamento das pessoas comuns, que passaram a frequentar o litoral e vestir as crianças com roupas de marinheiros, denotam uma mudança de atitude em relação aos oceanos.

A revolução industrial, por seu turno, viria a determinar uma massificação da exploração dos recursos marinhos e muito da mística de marinheiros e velejadores se perde quando embarcações de madeira são substituídas por imensos navios de metal, com processamento industrial e transporte por contêineres de produtos em massa. A sobreexplotação das pescarias e as tentativas de gerenciar os recursos restantes formam um capítulo triste nessa história de como nos portamos diante dos oceanos.

Mesmo a fantasia da vida subaquática dos anos 60, os sonhos de exploração mineral, de fazendas de peixes, não fizeram mais que recuperar um pouco do entusiasmo num momento em que os oceanos estão se esgotando e mesmo a imaginação literária e artística deles se afasta e mais uma vez o oceano foge ao cotidiano na maioria das pessoas. Se tanto, serviram para encararmos a finitude desses recursos e ajeitarmos para explorá-los de maneira mais organizada e pacífica (vide a Convenção sobre o Direito do Mar).

Ainda assim, o tom que a autora imprime não é negativo. Antes, a maré de nossa relação com os oceanos pode ter momentos de cheia ou de vazante, mas o fato é que estamos destinados a conviver com suas águas a torná-los parte de nossa experiência na Terra.

Rozwadowski mostra aqui que nos melhores momentos fomos capazes de perceber a riqueza, tanto de recursos físicos (biológicos ou não) quanto de inspiração, que os oceanos podem nos proporcionar. Somente o estudo histórico desses momentos pode nos levar a reavaliar como estamos nos portando agora e como podemos mudar nossa percepção e atitude em relação aos oceanos.

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