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11 maio 2020

Navegando pelo desconhecido

Por Bruno Costelini
Oceanógrafo pelo CEM/UFPR e doutorando em Direito na Universidade de Durham


 

Conforme a pandemia em curso avança impiedosamente, governada pelas leis da biologia e da epidemiologia, por todos os cantos do planeta, nos encontramos diante de uma serie de dilemas, dúvidas, e situações-limite, em que decisões precisam ser tomadas, mesmo com um conhecimento por vezes parcial, difuso, incompleto.

Para as ciências ambientais, o desconhecido é, com o perdão do trocadilho, um velho conhecido. Estudos de Avaliação de Impacto Ambiental, por exemplo, ao analisar os diversos parâmetros físicos, biológicos e sociais potencialmente afetados por um empreendimento proposto, fazem uso não apenas de dados coletados especificamente para o caso em questão, mas o combinam com o conhecimento prévio de atividades semelhantes para calcular a probabilidade e a extensão de todos os possíveis efeitos.

A oceanografia, em particular, lida o tempo todo com o desconhecido. É um clichê estabelecido que conhecemos melhor a superfície de Lua ou de Marte que a topografia dos fundos marinhos. Coordenar os diversos usos e atividades que ocupam as vastas extensões dos oceanos e assegurar o equilíbrio entre exploração e preservação exige navegar por mares de dados desencontrados e incompletos.

Assim também a epidemiologia (e aqui arrisco um comentário de epidemiologista amador, no qual todos nos tornamos um pouco nos últimos meses), ao avaliar as formas de transmissão de um vírus, sua taxa de mortalidade, e ao sugerir estratégias de contenção que serão (ou deveriam ser) adotadas, tem de lidar com o desconhecido, com a ausência de dados, a subnotificação, o conhecimento incipiente da biologia do vírus e de drogas que o combatam.

As lacunas de conhecimento são não apenas, como na tradição iluminista que fundamenta a ciência moderna, o material a partir do qual toda pesquisa cientifica é desenvolvida, mas são também, em si mesmas, objetos de estudo. O estudo do desconhecimento, ou da ausência de conhecimento, é o objeto dos Estudos da Ignorância.

Se essa meta-ciência pode contribuir em alguma coisa, é em evidenciar para nós, cientistas, promotores de políticas publicas e cidadãos em geral, os usos e abusos que cometemos quando enfrentamos o desconhecido. Na sociedade em que vivemos, que o sociólogo alemão Ulrich Beck chama de sociedade de risco, o cálculo do impacto das decisões políticas, econômicas etc., é uma constante. E o elemento desconhecido precisa ser considerado.

O que os Estudos da Ignorância nos mostram é que o desconhecido não serve apenas como mote para novas pesquisas e para a evolução do conhecimento. O desconhecido é também uma arma política, um objeto de contenção entre lobbies e formuladores de regulações e políticas publicas, gestores e mandatários políticos.

A ausência de um conhecimento assentado e completo pode ser o grande incentivo para pesquisadores de mudanças climáticas, de oceanografia de áreas profundas e de epidemiologistas de vírus emergentes. Mas ela é também o alimento dos paranoicos do aquecimento global, empreendedores da explotação irrefreada dos recursos marinhos e céticos da pandemia e do distanciamento social.

Estados de confusão mental, como demonstra a escritora canadense Naomi Klein em seu livro Doutrina do Choque, costumam ser usados tanto por torturadores em busca de informação quanto por grupos políticos e defensores de políticas públicas impopulares para impor sua agenda sobre países em situações caóticas, aproveitando-se da falta de informação e da paralisia social a ela associada.

Se queremos atravessar essa crise com o menor prejuízo possível, não há que o fazer, portanto, senão aproveitar as experiências anteriores para transformar o pouco conhecimento disponível em ações coerentes e sensatas e em decisões e estratégias minimamente fundamentadas, atentando para os mercadores da ignorância e os mensageiros do caos, que nesse momento grassam.

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