Ausência de dados: o que ignoramos é um oceano
Por: Samira Scoton
Doutoranda em Estudos Marítimos (PPGEM/EGN); Mestre em Segurança Internacional e Defesa (PPGSID/ESG); Pesquisadora do Grupo Economia do Mar (GEM); do Laboratório de Simulações e Cenários (LSC/EGN); e do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (NEPEDIMA/UERJ); Advogada (FND/UFRJ).
Uma das metas estabelecidas pela Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável[1] (Década do Oceano) é um oceano transparente e acessível. Em português, a palavra transparente associada à palavra oceano nos leva a pensar em águas cristalinas, por meio das quais a luz penetra e se pode enxergar as belezas do mar com clareza. No fundo, a ideia parece ser exatamente essa: olhar e entender o oceano profundamente.
Há, entretanto, uma fossa abissal no caminho desses raios de luz: a ausência de dados científicos relacionados ao oceano. Se a proposta é um oceano transparente, com acesso aberto aos dados, às informações e tecnologias[2], a produção de dados é necessária para se entender o cenário e as conexões dos diversos temas que se relacionam ao mar, conectando as ciências humanas, exatas e biológicas.
Para além disso, a produção científica relacionada aos mares é desigual entre os Estados, estando, por exemplo, o Brasil em posição mediana em relação a outros países, como Estados Unidos e China. Salienta-se que a maior fronteira brasileira em extensão é o oceano, no nosso caso, denominado Amazônia Azul. Para uma melhor compreensão desses dados, observe o mapa a seguir[3]:
A questão da produção dos dados fica ainda mais nebulosa quando se percebe a falta de conexão entre eles. Não há, por exemplo, bases globais e abrangentes de reúnam dados do oceano, tampouco que explicam a metodologia utilizada. A divulgação acaba sendo, em maior parte, descentralizada, pois geralmente fica retida em órgãos públicos dos Estados – também fragmentados – e parte em projetos ligados a universidades. Não há muitas iniciativas de agregar esses dados, estando concentradas em poucas áreas e temas, como a de transporte (ex: Sistema Trans-Regional Maritime Network – T-RMN), ou a esforços empreendidos por organizações internacionais.
Uma tentativa de construção de uma base de dados unificada é a da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável[4], que reúne em sua plataforma dados relacionados às metas que devem ser buscadas pelos países que com ela se comprometeram. A própria Agenda, contudo, não especifica uma metodologia para a produção desses dados, ficando à cargo de cada Estado. Este, por sua vez, produz os dados da forma como entende melhor e os disponibiliza na plataforma. Quando o país não produz esses dados, a própria organização da Agenda estabelece um número estimado[5].
Há, portanto, dois problemas nesse modelo: um para a construção da base de dados, que acaba prejudicada, visto que dados estimados não são dados reais; e outro para o Estado, que ao ter seus dados “estimados” fica à mercê da instituição estabelecer dados super ou infra estimados, podendo prejudicá-lo perante outros membros e, consequentemente, podendo lhe causar barreiras políticas.
Um sistema unificado para a produção de dados demanda cooperação científica e tecnológica, visto que as condições econômicas, políticas, e tecnológicas variam entre os Estados. Em contrapartida, essa é uma das formas de produzir dados de forma unificada, tornando possível um oceano transparente, conhecido e valorizado por todos, como almeja a Década do Oceano.
Aprofundando nessa problemática, a meta “oceano transparente” pode ser considerada o pilar que sustenta todas as outras metas constantes nessa Agenda. Se não há dados disponíveis sobre os temas relacionados ao oceano, não é possível galgar o sonho de “um planeta, um oceano” (em inglês, one planet, one ocean).
Para concluir, não há como pensar em Década do Oceano, sem se falar em metodologia, produção, disponibilização e integração de dados. Sem esse alicerce, não se edifica a estrutura que se pretende e as metas dessa Agenda não poderão ser galgadas de forma sólida. Se isso não for construído, em dez anos haverá apenas um castelo de areia, sem pilares sólidos, que poderá desabar na primeira onda mais forte.
*O título dessa coluna é uma alusão ao pensamento de Sir. Isaac Newton: “O que sabemos é uma gota, o que ignoramos é um oceano”.
**Fonte da Imagem de Capa: Freepik. Disponível em: https://br.freepik.com/fotos/agua
[1] ONU UNITED NATIONS – UN. International (UN) Decade of Ocean Science for Sustainable Development. Resolution adopted by the IOC Assembly at its 29th Session, Paris, 21–29 June 2017, (Resolution XXIX-1), 2017
[2] BRASIL. A ciência que precisamos para o oceano que queremos – Década das Nações Unidas da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável (2021-2030). Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Brasília: Set. 2019. Disponível em 265198por.pdf (mctic.gov.br)
[3] BRASIL. A ciência que precisamos para o oceano que queremos – Década das Nações Unidas da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável (2021-2030). Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Brasília: Set. 2019. Disponível em 265198por.pdf (mctic.gov.br)
[4] Para uma melhor compreensão da base de dados, consultar https://unstats.un.org/sdgs/indicators/database/
[5] A base de dados utilizadas para medir os indicadores dos ODS, pela ONU, trabalha com os seguintes tipos de dados: (fn) Footnotes; (C) Country data; (CA) Country adjusted data; (E) Estimated data; (G) Global monitoring data; (M) Modeled data; (N) Non-relevant; e (NA) Data nature not available. O Estimate data é o que se menciona nessa coluna que deve ser motivo de atenção dos Estados.