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12 outubro 2021

A Vida Marinha com Júlio Verne

Por Bruno Costelini

Oceanógrafo pelo CEM/UFPR e doutorando em Direito na Universidade de Durham, Reino Unido

 

Acabei de passar as últimas semanas relendo atentamente o clássico de Júlio Verne, “Vinte Mil Léguas Submarinas” (ou “20 Mil Léguas”). É fácil ignorar Verne hoje em dia como um autor antiquado de histórias de aventura superficiais para crianças (ou jovens adultos, se esse termo existisse na Europa do século XIX), especialmente aqui no Brasil, onde versões resumidas e simplificadas de seus romances costumavam circular mais que traduções integrais. Minha leitura chegou a conclusões opostas, então eis que me coloco aqui diante da comunidade do Direito do Mar para testemunhar e pregar o evangelho de Verne!

20 Mil Léguas é narrado em primeira pessoal pelo Professor Pierre Aronnax, um naturalista francês e maior especialista sobre os oceanos, sobre os quais escreveu um grande tratado baseado em dados e anedotas diversas. Aronnax se sente impelido a participar da perseguição a uma misteriosa criatura assemelhada a uma baleia que vinha ameaçando embarcações ao redor do mundo, e eventualmente vai parar, junto com seu criado Conselho e como arpoador canadense Ned Land, no barriga da famigerada criatura, que no final das contas não era exatamente uma baleia, mas sim um submarino, liderado pelo misterioso Capitão Nemo. O livro então segue suas viagens pelo mundo, agora que o Professor pode explorar e ver com os próprios olhos as maravilhas das profundezas.

A imaginação de Verne estava bastante à frente do seu tempo, mas era sempre calcada nos desenvolvimentos científicos e tecnológicos que estavam sendo concebidos naquela época. A construção de submarinos, roupas de mergulho autônomo, equipamentos elétricos, tudos isso chegaria à vida real nas décadas seguintes, e o romancista francês astutamente as previa quando estudava a história da ciência e os debates contemporâneos. 20 Mil Léguas, com efeito, assim como todas as histórias do seu ciclo “Viagens Extraordinárias” foi serializado inicialmente nas edições quinzenais do periódico “Magasin d’éducation et de récréation”, uma revista de divulgação cientifica.

Mas a visão de Verne ia além dos avanços tecnológicos, chegando mesmo a prever as consequências ambientais e as atividades humanas que um dia ameaçariam as áreas mais recônditas dos oceanos, uma vez que sua exploração se tornasse possível. Os efeitos deletérios da sobrepesca sobre os estoques pesqueiros e os impactos ecossistêmicos não escapavam às preocupações do autor, assim como as possibilidades de exploração mineral nos fundos marinhos, algo que dificilmente podia ser imaginado na França dos anos 1870.

Mas o ponto da trama que talvez mais interesse o especialista em direito internacional que esteja casualmente considerando ler o livro hoje é tentar decifrar os motivos por trás da decisão de Nemo de abandonar o mundo dos homens, cheio de decepção e conflito para encontrar um respiro nas profundezas dos mares, junto a sua tripulação de possíveis desajustados. É sugerido que que suas razões tem ligação com um passado de lutas contra a opressão de países europeus num contexto de colonialismo e seu eventual fracasso. Nemo expõe sua indignação com as injustiças do sistema internacional de sua época, e só consegue encontrar conforto ao se retirar daquele sistema.

Agora, quando olhamos para o regime internacional dos oceanos e sua construção histórica, cem anos depois de 20 Mil Léguas na UNCLOS, vemos um tratado que viu nas riquezas dos fundos marinhos uma saída para o sistema colonial, que àquela época estava se desintegrando. Quando se esboçaram os mecanismos para explotação mineral e a ISA, muito esforço e esperança foram investidos para reequilibrar o poder econômico desigual dos países em desenvolvimento e antigas colônias na África e em outros lugares. Curiosamente, no livro, Nemo extrai a riqueza que sustenta suas viagens de uma mineração secreta no meio do Atlântico.

Um clássico, nas palavras de Italo Calvino, é um livro que, entre outras coisas, fala para além de seu tempo, mantendo sua relevância e significado para os leitores do futuro.  20 Mil Léguas prova ser um clássico portanto, mesmo que disfarçado de literatura de aventura juvenil, pois enfrenta algumas questões que se mantem proeminentes até hoje, particularmente relevante para nossa comunidade de Direito do Mar. Essa semana mesmo, vimos o Nobel de literatura ser entregue ao escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah, que em seus romances denuncia o sistema colonial, em especial as intervenções da Alemanha em seu país de origem, onde a exploração mineral e as violações de direitos humanos caminharam de mãos dadas. Continuemos a ler esses testemunhos então, pois sua relevância persiste.

 

** Imagem da capa: original de  Alphonse de Neuville e Édouard Riou
Versão utilizada disponível em: https://www.redbubble.com/i/poster/20000-Leagues-Under-the-Sea-by-Sabistar/25774481.LVTDI

 

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