O tempo das ilhas desconhecidas
Por Soraya Fonteneles de Menezes
Mestre e Doutoranda em Estudos Marítimos pela Escola de Guerra Naval. Pesquisadora do Laboratório de Simulações e Cenários (LSC) e do Observatório de Políticas Marítimas. Editora da equipe de colunistas do IBDMAR.
Poderás dizer-me para que queres o barco, Para ir à procura da ilha desconhecida, Já não há ilhas desconhecidas, O mesmo me disse o rei, O que ele sabe de ilhas, aprendeu-o comigo, É estranho que tu, sendo homem do mar, me digas isso, que já não há ilhas desconhecidas, homem da terra sou eu, e não ignoro que todas as ilhas, mesmo as conhecidas, são desconhecidas enquanto não desembarcamos nelas[1].
As regiões extremas da Terra sempre fascinaram o homem. Os polos, com sua geografia remota e temperaturas austeras, foram mantidos praticamente resguardados da presença humana até muito recentemente. A Antártica, por exemplo, foi avistada desde a antiguidade por navegadores em tempos de tormenta, de sorte que pairava uma suspeita sobre sua natureza. Somente entre 1830 e 1840, expedições financiadas por europeus buscaram desvendar se a região seria apenas uma ilha!
O início do século XIX seria o apogeu das “Grandes Expedições ao Polo Sul”, quando Amundsen desembarcou na região com sucesso em 1911. Os ingleses Robert F. Scott e Ernest H. Shackleton também tiveram seus papeis de destaque, como amplamente documentado pela literatura[2] sobre o período.
Em julho desse ano, cientistas dinamarqueses “acidentalmente” encontraram uma ilha desconhecida, situada ainda mais ao norte de Oodaaq, – ambas ao extremo norte do território da Groenlândia[3]. A descoberta veio em um momento de muita pressão sob ao Ártico, com duradouros incêndios em áreas como o Alasca[4] e a Sibéria[5], ameaçando a vida natural na região. Ao mesmo tempo, o derretimento de uma camada de gelo permitindo a navegação perene pela “Rota do Ártico”, assim como a possibilidade de exploração dos recursos energéticos na região, aumentam as tensões geopolíticas entre os Estados lindeiros.
A Convenção de Montego Bay dedicou apenas o artigo 121 ao regime das ilhas. Em suma, trata-se de um pedaço de terra naturalmente formado, rodeado que esteja sempre emerso mesmo em maré cheia. Não podemos esquecer que sua existência confere aos Estados não apenas um mar territorial e uma zona contígua, mas também uma zona econômica exclusiva e uma plataforma continental. Por esse motivo, uma remota ilha perdida no meio do oceano pode representar uma enorme vantagem econômica e estratégica[6].
No extremo oposto, encontra-se a situação dos Estados insulares afetados diretamente pelo aumento do nível do mar que já faz vítimas em determinadas áreas do planeta, como em pequenos Estados Insulares no Pacífico[7]. As mudanças alteram diretamente a vida e a subsistência das suas populações, que em alguns casos entram em uma categoria desafiadora para o Direito Internacional: os migrantes ambientais.
Em 22 de setembro de 2021, a Aliança dos Pequenos Estados Insulares[8] (Alliance of Small Islands States), concluiu, durante seu encontro virtual, a Declaração de 2021[9]. Além de pontuar de forma contundente a imperiosa necessidade de mitigar as Mudanças Climáticas e de reforçar o compromisso com o Desenvolvimento Sustentável, a Declaração dedica um tópico unicamente aos Oceanos. Nele, compete destacar a preocupação como a manutenção dos limites territoriais marinhos atuais, como transcrito abaixo:
Afirma que não há obrigação no âmbito da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de manter as linhas de base ou os limites externos de áreas marinhas a serem revisadas, assim como de atualizar cartas náuticas e cooordenadas já depositadas junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas, e que direitos e prerrogativas advindos de tais áreas marinhas devem continuar a ser aplicadas sem reduções, não obstante mudanças físicas ligadas ao aumento do nível dos mares relacionado à mudanças climáticas[10]. (tradução nossa[11])
Quando o protagonista da obra de José Saramago procura o Rei e pede um barco para procurar sua ilha desconhecida, é desacreditado, pois todas as ilhas já estariam nos mapas e, portanto, já pertenceriam à coroa. Olhando para a questão através das lentes de hoje, faz-se necessário ter em vista a amplitude do próprio debate jurídico acerca do que é uma ilha, embebido em interesses políticos, econômicos e sociais que o circundam, além da assimetria política entre os atores envolvidos.
Além das mudanças nos limites das ilhas “conhecidas”, o mapa dos oceanos como conhecemos hoje pode mudar drasticamente caso não seja estabelecido um critério jurídico a esse respeito. Assim, pode-se afirmar que a questão da elevação do nível dos mares e o regime das ilhas irá figurar entre os grandes temas do Direito do Mar ao longo desse século.
[1] SARAMAGO, José. O Conto da Ilha Desconhecida. 15ª Reimpressão. Lisboa: Companhia das Letras, 1988. P. 27.
[2] Nesse sentido, recomenda-se: Endurance: Shackleton´s Incredible Voyage (Alfred Lansing), Scott And Amundsen: The Last Place on Earth (Roland Huntford)
[3] BBC. Greenland island is worlds’s northernmost island. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-58362752
[4] BORUNDA, Alejandra. National Geographic. Environment. ‘Zombie’ fires in the Arctic are linked to climate chage. Disponível em: https://www.nationalgeographic.com/environment/article/zombie-fires-in-the-arctic-are-linked-to-climate-change
[5] Witze, Alexandra. Nature. The Arctic is burning like never before – and that´s bad News for climate change. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-020-02568-y
[7] Sendo para tais fins considerados: Estados Federados da Micronésia, Kiribati, Nauru, República das Ilhas Marshall, Palau, Papua Nova Guiné, Samoa, Ilhas Salomão, Tonga, Tuvalu e Vanuatu – segundo Projeto Pacific Climite Change and Migration (PCCM), envolvendo União Europeia, Organização Internacional do Trabalho e das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
[8] Composta por 39 Estados Membros. Mais informações em: https://www.aosis.org/
[9] ALLIANCE OF SMALL ISLAND STATES. Leader’ Declaration. 2021. Disponível em: https://demaribus.files.wordpress.com/2021/09/aosis-leaders-declaration-endorsed-16.09.2021.doc
[10] Idem (41)
[11] Do original: “Affirm that there is no obligation under the United Nations Convention on the Law of the Sea to keep baselines and outer limits of maritime zones under review nor to update charts or lists of geographical coordinates once deposited with the Secretary-General of the United Nations, and that such maritime zones and the rights and entitlements that flow from them shall continue to apply without reduction, notwithstanding any physical changes connected to climate change-related sea-level rise”