Notícias

28 julho 2021

UM CONTO DE DUAS HISTÓRIAS: O DECLÍNIO DA BIODIVERSIDADE MARINHA E O AUMENTO DA FOME

Por: Samira Scoton.

Doutoranda em Estudos Marítimos (PPGEM/EGN); Mestre em Segurança Internacional e Defesa (PPGSID/ESG); Pesquisadora do Grupo Economia do Mar (GEM); do Laboratório de Simulações e Cenários (LSC/EGN); e do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Direito Internacional do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (NEPEDIMA/UERJ); Advogada (FND/UFRJ).


O ciclo de declínio da biodiversidade marinha impactará significativamente na alimentação do ser humano se não for revertido. A segurança alimentar é uma das dimensões da segurança humana e existe “quando as pessoas têm, a todo momento, acesso físico e econômico a alimentos seguros, nutritivos e suficientes para satisfazer as suas necessidades dietéticas e preferências alimentares, a fim de levarem uma vida ativa e sã”[1].

Ao se considerar essa definição, de acordo com estimativas da FAO[2], aproximadamente 1 em cada 6 habitantes do planeta está em situação de subnutrição. Ainda segundo a FAO, mais de 40% desse total vive na Ásia, que é a região que apresenta maior crescimento demográfico mundial. Calcula-se, portanto, que para suprir essa demanda, a produção mundial de alimentos deve aumentar em 70% até 2050, para que seja possível garantir a disponibilidade de alimentos para a população global[3].

Esses dados, por si só, já se mostram preocupantes, entretanto, a situação ainda piora quando se observa que parte dos alimentos consumidos pelo ser humano são provenientes do oceano que, por sua vez, tem seus estoques reduzidos dia após dia. Portanto, não basta apenas aumentar a produção em terra, há que se resolver o problema do declínio dos estoques marinhos.

Dentre os motivos dessa redução, a superexploração, as mudanças climáticas e a poluição aparecem entre os mais citados[4].  Os impactos são econômicos, sociais, ambientais e políticos[5]. A escassez de proteína animal oriunda do mar, portanto, é um dos desdobramentos desse quadro. Em outras palavras, os impactos também se relacionam à falta de alimento no prato, ou seja, à insegurança alimentar. De forma resumida e mais direta, a fome pode se agravar ainda mais se medidas urgentes e eficazes de proteção ao oceano não forem tomadas.

Observando que as atividades marinhas vêm se tornando insustentáveis ano a ano, em 2021 teve início uma agenda da Organização das Nações Unidas (ONU) direcionada ao oceano: a Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável[6]. Chama-se a atenção, contudo, que apenas essa iniciativa não é suficiente. Reverter o ciclo de declínio da saúde do oceano, e criar condições viáveis para o desenvolvimento sustentável, como pretendido, não se faz somente por meio da tomada de decisão de órgãos internacionais. E eu explico o porquê.

A Convenção das Nações Unidas Sobre Direito do Mar (CNUDM), maior diploma que regula o uso dos oceanos, determina em seu texto que o Estado costeiro deve determinar as capturas permitidas de recursos vivos em sua Zona Econômica Exclusiva (ZEE), assegurando medidas adequadas de gestão e conservação, de forma a não colocar em risco a continuidade dos recursos vivos da ZEE (artigo 61, CNUDM).

Em pese exista um marco regulatório, a degradação dos recursos vivos vem acontecendo antes mesmo desse diploma legal ser confeccionado, assinado e reconhecido pelos Estados. Em poucas palavras, uma Convenção[7] não foi suficiente para impedir que chegássemos a atual situação de superexplotação desses recursos.

Deve-se lembrar que “a História da humanidade tem como pano de fundo a luta para, em síntese, superar o problema da escassez de recursos em face de necessidades mutantes e crescentes”[8]. Além disso, salienta-se que o alimento vem sendo utilizado como arma (food as weapon) desde tempos imemoriais. Há, dessa forma, mais uma razão para que não se aumente a situação de insegurança alimentar, devendo, portanto, impedir que o ciclo de degradação da biodiversidade marinha continue.

Ainda nadando nessa corrente, o ambiente internacional expõe que não se pode negligenciar a intensificação de disputas por áreas marítimas, por fontes de água doce, de energia e de alimento[9], haja vista o aumento das atividades humanas, devido ao crescimento econômico e populacional. Assim sendo, há a possibilidade de acontecer ou se intensificar possíveis conflitos envolvendo áreas marítimas e alimento.

Não se intenta, de forma alguma, dizer que inciativas como agendas internacionais e convenções sejam desnecessárias, mas, sim, que são insuficientes. O objetivo desse texto, portanto, é trazer ao leitor a consciência sobre a possível situação de insegurança alimentar caso não se olhe para o oceano com mais cuidado. O impacto, dessa vez, será no prato: a fome pode, sim, chegar com ainda mais força no cotidiano do ser humano.

 

O título dessa Coluna é uma contribuição de Wallace Santana (Pesquisador do NEPEDIMA/UERJ)

 


Fonte da imagem de capa: Freepik. Disponível em: <a href=’https://br.freepik.com/fotos/padrao’>Padrão foto criado por rawpixel.com – br.freepik.com</a>

[1] FAO. Declaração de Roma Sobre a Segurança Alimentar Mundial e Plano de Acção da Cimeira Mundial da Alimentação. World Food Summit. Roma, 1996. Disponível em: http://www.fao.org/3/w3613p/w3613p00.htm.

[2]FAO. The future of food and agriculture: trends and challenges. Roma: FAO, 2017.

[3]MUTEIA, H. Segurança Alimentar no Contexto de uma Economia Sustentável. Cadernos Adenauer, Rio de Janeiro, v.13, n.1, p.95-107. 2012. Disponível em: www.kas.de/wf/doc/7345-1442-5-30.pdf.

[4] Entende-se também, dentro do contexto da superexploração, a pesca – tanto legal quanto ilegal (IUU fishing). Optou-se, entretanto, por não trazer essa temática a essa coluna, visto que trata-se de assunto bastante abrangente que pode ser abordado em Coluna posterior.

[5] PÉREZ, Daniel Vidal; LAMEIRAS, Fortunato Lobo. Agricultura Como Componente da Política de Segurança Nacional Brasileira. Revista da Escola Superior de Guerra, v. 35, n. 73, p. 96-123, jan./abr. 2020

[6] UN. Decade of Ocean Science for Sustainable Development. Disponível em: The Decade of Ocean Science for Sustainable Development (oceandecade.org)

[7] Observa-se, inclusive, foram necessárias algumas décadas para que se chegasse ao texto final da CNUDM. Um dos pontos de desentendimento era em relação aos estoques pesqueiros. Esse tema foi motivo de acordos paralelos e, apenas depois destes, a Convenção passou a ser assinada pelos Estados.

[8] ESG. Fundamentos do Poder Nacional. Escola Superior de Guerra. Rio de Janeiro: ESG, 2019.

[9] BRASIL. Política Nacional de Defesa. Brasília: Ministério da Defesa, 2016.

 

Share via
Copy link
Powered by Social Snap