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17 abril 2021

O Direito do Mar e Reservas relativas a Atividades Militares

A Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar estabelece em seu artigo 298 que Estados podem levantar exceções opcionais em relação à aplicação de um ou mais dos procedimentos compulsórios conducentes a decisões obrigatórias previstos na seção 2.[1] Em outras palavras, a Convenção permite que os Estados anexem certas reservas a suas declarações aceitando os procedimentos compulsórios prescritos.

Uma dessas exceções é em relação a disputas que envolvam atividades militares dos Estados, e pode ser encontrada no artigo 298(1)(b), que preclui a iniciação de procedimentos relacionados a “controvérsias relativas a atividades militares, incluídas as atividades militares de embarcações e aeronaves de Estado utilizadas em serviços não comerciais […]”[2]. Entretanto, embora a Convenção prescreva essa possibilidade, ela não define claramente o que constituiria exatamente uma “atividade militar”, e o que não. Conforme o Juiz Gao esclarece, “o termo “atividades militares” é usado, mas não definido, na Convenção. Nem tem sido lidado pela jurisprudência das Cortes e Tribunais Internacionais desde que a Convenção entrou em força.”[3] Portanto, como pode-se esperar de tópicos dentro do Direito Internacional com um campo aberto para diferentes interpretações, esse assunto já causou algumas controvérsias, e mais de uma descrição já foi dada para o que constituiria uma atividade militar.

Sob a prática estatal, parece que a limiar para se determinar se uma certa atividade é militar ou não, é mais flexível. As atividades que já foram caracterizadas como militares variam desde navegação rotineira e sobrevoo, a exercícios e manobras, ao disparo e teste de armas, e a pesquisas e vigilâncias.[4] Neste espeque, quando ilustrando atividades militares conduzidas pelos Estados Unidos, Pedrozo aponta para a importância de se analisar o “propósito” da atividade:

 “Because the data collected by these ships are used exclusively by the US armed forces for military purposes, their activities are not MSR [Marine Scientific Research] and are not subject to coastal State control.”

A China, por exemplo, já classificou várias de suas incursões em ZEEs estrangeiras como militares. Em uma ocasião, um submarino chinês foi localizado 25 milhas da ilha japonesa de Kyushu. À época, oficiais chineses indicaram que o submarino estava engajado em um “treinamento marítimo rotineiro”.[5] Ademais, em 2004, um navio chinês foi encontrado dentro da ZEE japonesa. Quando perguntados sobre a presença do navio na ZEE do Japão, os oficiais chineses indicaram que o “navio estava engajado em atividades militares, assim afastando a necessidade de notificação [prévia]” ao governo japonês.[6]

Outrossim, a literatura geralmente parece apoiar uma interpretação relativamente generosa do conceito.[7] Talmon, a título de exemplo, afirma que:

“there is a widespread agreement that, considering the highly political nature of military activities, the term must be interpreted widely. Military activities are not limited to actions by warships and military aircraft or government vessels and aircraft engaged in non-commercial service.”[8]

Em 2016, pela primeira vez, uma Corte foi chamada para lidar com o problema das reservas em relação a atividades militares, na arbitragem do Mar do Sul da China, para examinar se a reserva chinesa sobre suas atividades militares, precluiria a Corte de exercer sua jurisdição em razão da matéria. Neste caso, as Filipinas argumentaram que a atividade Chinesa de construção de ilhas não caia dentro de sua exclusão jurisdicional relativa a “atividades militares”, sob o artigo 298(1)(b)[9], pois a natureza e o propósito dessas não era militar.[10] A Corte, aceitando os argumentos avançados pelas Filipinas, entendeu que a natureza, a intenção e o propósito das atividades da China não eram, realmente, militares e, assim, desestimou a aplicação da reserva para esta submissão.

Mais tarde, quando analisando uma outra submissão, a Corte encontrou que o novo tópico cairia dentro da reserva chinesa porque a situação “envolvia as forças militares de um lado e uma combinação de forças militares e paramilitares do outro, arranjadas em oposição, uma à outra.”[11] e, na opinião da corte, isso constituiria uma situação militar quintessencial. Apesar disso, embora a Corte tenha estabelecido o que seria o exemplo perfeito de uma, ela não considerou necessário “explorar as fronteiras do que constitui e do que não constitui atividades militares para os propósitos do artigo 298(1)(b).”[12] Interessantemente, um autor critica a lógica aplicada pela CPA afirmando que “as interpretações conflituosas e a aplicação ambígua do Artigo 298(1)(b) pelo Tribunal são óbvias”[13]

Mais recentemente, o Tribunal Internacional para o Direito do Mar teve a oportunidade de lidar com o assunto, sob o pedido pela prescrição de medidas provisórias no Case Concerning the detention of three Ukrainian Naval Vessels, entre Ucrânia e Rússia. Na ordem emitida pelo Tribunal, assim como na Arbitragem do Mar do Sul da China, teve de ser analisado se a reserva da Rússia em relação a suas atividades militares seria acionada. A Rússia, referenciando o entendimento da CPA, argumentou que a situação, assim como a do Mar do Sul da China, constituía uma situação militar quintessencial, pois envolvia suas forças militares contra as Ucranianas.[14]

O Tribunal, no entanto, decidiu dar um passo além do assumido pela CPA, e afirmou que a avaliação não poderia se restringir a um parecer em relação à natureza dos veículos envolvidos[15], mas sim, era preciso que se considerasse a natureza da atividade em questão, levando em conta as circunstancias relevantes da cada caso.[16] Consequentemente, o Tribunal sustentou que no centro da disputa Rússia v Ucrânia se localizava uma operação de aplicação da lei, decorrente da diferente interpretação que as partes tinham em relação ao regime de passagem pelo Estreito de Kerch, não uma atividade militar.[17]

Em contrapartida, o Juiz Gao em sua Opinião separada, manteve que o Tribunal implementou uma interpretação muito restrita para a exceção sobre atividades militares.[18] Além disso, um comentarista sugere que o Tribunal interpretou o escopo de “Atividades Militares” bem restritamente e, consequentemente, abaixou sua barra jurisdicional.[19] Nesse sentido, pode se afirmar que, não apenas em geral, a jurisprudência relacionada a atividades militares é nebulosa, mas também, em específico, a decisão do ITLOS causou algum desacordo na comunidade internacional.

Em conclusão, como o Juiz Gao aponta “Essas interpretações contraditórias do artigo 298, parágrafo 1(b), e os padrões duplos empregados em sua aplicação, certamente irão criar confusões legais entre as partes e entre os Estados.”[20] Além disso, aqueles Estados que fizeram declarações sob o Artigo 298.1.b podem ter suas expectativas frustradas em relação ao que constituiria uma atividade militar e, quanto ao campo coberto por suas reservas. Consequentemente, enquanto é otimista esperar por uma pacificação sobre o que constituem atividades militares dentro do Direito do Mar, também é certo que as cortes continuarão a serem provocadas para darem novas interpretações sobre o tema.

Por Augusto Guimarães Carrijo, graduando em Direito na Universidade Federal de Uberlândia, sob a orientação do Dr. Felipe Kern Moreira, diretor do IBDMAR.

[1] UNITED NATIONS. United Nations Convention for the Law of the Sea, 10 Dez. 1982, art. 298. Available at: https://www.un.org/depts/los/convention_agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf.

[2] Ibid., art. 298(1)(b)

[3] ITLOS. Case Concerning the detention of the three Ukrainian Naval Vessels (Ukraine v Russia). Order, Separate Opinion Judge Gao (2019), para. 18.

[4] PEDROZO, Raul. Preserving Navigational Rights and Freedoms: The Right to Conduct Military Activities in China’s Exclusive Economic Zone. Chinese Journal of International Law, v. 9, n. 1, p. 9-20, 2010. p. 13-14.

[5] CHINA DAILY. China’s submarine no threat to Japan. China, 19 Nov. 2003. Available at: http://www.chinadaily.com.cn/en/doc/2003-11/19/content_282937.htm.  apud PEDROZO, Raul. Preserving Navigational Rights and Freedoms: The Right to Conduct Military Activities in China’s Exclusive Economic Zone. Chinese Journal of International Law, v. 9, n. 1, p. 9-20, 2010. p. 16

[6] TKACIK, John. China’s New Challenge to the U.S.-Japan Alliance.  REPORT ASIA. 13 jun. 2004. Available at: https://www.heritage.org/node/17723/print-display apud  PEDROZO, Raul. Preserving Navigational Rights and Freedoms: The Right to Conduct Military Activities in China’s Exclusive Economic Zone. Chinese Journal of International Law, v. 9, n. 1, p. 9-20, 2010. p. 16

[7] ITLOS. Case Concerning the detention of the three Ukrainian Naval Vessels (Ukraine v Russia). Order, Separate Opinion Judge Gao (2019), para. 19

[8] TALMON, Stefan. The South China Sea Arbitrations: is there a Case to Answer?. IN: TALMON, Stefan; JIA, Bing Bing. The South China Sea Arbitration: A Chinese Perspective, Oxford: Hart Publishing, p. 15-79, 2014. p. 57-58.

[9] PCA. South China Sea Arbitration (Philippines v China), nº 2013-19893. Award (2016), para. 893.

[10] Ibid., para. 1013.

[11] Ibid., para. 1161.

[12] Ibid., para. 1161.

[13] ZOU, Keyuan; YE, Qiang. Interpretation and application of Article 298 of the Law of the Sea

Convention in Recent Annex VII Arbitrations: An Appraisal. Ocean Development & International Law, v. 48 p. 331-344, 2017. p. 340.

[14] ITLOS. Case Concerning the detention of the three Ukrainian Naval Vessels (Ukraine v Russia). Order (2019), para. 52

[15] Ibid., para. 64

[16] Ibid., para. 66.

[17] Ibid., para. 72-74.

[18] ITLOS. Case Concerning the detention of the three Ukrainian Naval Vessels (Ukraine v Russia). Order, Separate Opinion Judge Gao (2019), para. 39-41.

[19] ISHII, Yurika. Introductory note to case concerning the detention of three Ukrainian Naval Vessel (Ukraine v. Russia Federation): Provisional Measures Order (ITLOS). International Legal Matters, v. 58, p. 1148-1166, 2019. p. 1148

[20] ITLOS. Case Concerning the detention of the three Ukrainian Naval Vessels (Ukraine v Russia). Order, Separate Opinion Judge Gao (2019), para. 44.

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