Notícias

01 março 2021

Nota “tardia” em memória do professor Charles Leben

Ao buscar textos do professor Charles Leben dedicados à análise do pensamento de Hans Kelsen, deparei-me com a muito triste notícia de seu falecimento ocorrido em 5 de agosto de 2020, aos 75 anos de idade.

Meu primeiro contato com o Professor Leben aconteceu em 2006, quando eu preparava minha candidatura à bolsa de estudos do Programa Alßan da Comissão Europeia. Meu projeto de tese, centrado na definição de biopirataria como ato ilícito internacional, havia sido concebido dentro de uma perspectiva jurídico-econômica com a qual a orientação do professor Leben encaixava-se perfeitamente, tendo em conta sua trajetória doutrinária consagrada às relações econômicas internacionais.

Meu primeiro encontro pessoal com ele deu-se em uma fria manhã de janeiro de 2007, em seu gabinete no Institut des hautes études internationales (IHEI), localizado na Université Pathéon-Assas Paris II, no número 12 da praça do Panteão. Desde então, mantive, ao longo dos cinco anos durante os quais ele foi meu orientador de tese, a mesma opinião a seu respeito.

O professor Leben era extremamente rigoroso, muitas vezes duro, mantendo sempre a necessária distância às relações profissionais. Isso nunca impediu, entretanto, de estar próximo de mim para ler, ouvir, discutir e contribuir. Ele era severo, mas não tinha um “coração de tigre”, como me disse um dia.

Graças a ele, amadureci rapidamente como pesquisador. Passei a entender a pesquisa científica em termos mais sistêmicos, planificados e coesos, uma característica que nunca mais me abandonou. Seu jeito de pensar a realidade jurídica tornou-se uma marca profunda nas minhas próprias pesquisas posteriores. Até hoje, quando estudo e escrevo, sigo os seus conselhos.

A seriedade da orientação de tese e a dureza das correções de meu trabalho só cederam após a defesa de tese. Já no dia seguinte, passei imediatamente a ser tratado por ele – para meu encantamento – como “meu amigo”.

A última vez que o encontrei pessoalmente, em uma tarde ensolarada de maio de 2014, marcamos um encontro para tomar um café perto da Sorbonne. Encontramo-nos na entrada da Faculdade de Direito e descemos a rua Soufflot. Entramos em uma cafeteria e nos acomodamos em uma estreita mesinha. Enquanto ele bebia a sua Orangina, contou-me um pouco de sua vida.

Afirmou que a aposentadoria – ele já era, naquele momento, professor emérito – tinha sido uma grande alegria, pois, a partir daquele momento, ele se dedicava tão somente ao que lhe interessava. Estava realmente feliz.

Falou da sua origem judaica. Contou que seus pais, que vivam na Polônia, fugiram da perseguição nazista para a União Soviética. Por isso, ele nasceu no Uzbequistão*, em 1945, poucos meses antes do fim da Guerra. Disse que, ainda criança, sua família se mudou para a França, onde permaneceu desde então. Falou dos seus dois netos, que eram encantados com a Amazônia, e da sua esposa, que amava a literatura brasileira.

Rememorou o início de sua carreira docente na Universidade de Dijon, cujas paisagens eram descritas por ele como de uma beleza ímpar. Despedimo-nos, naquele dia, combinados de que, um dia, ele viria ao Brasil para palestrar na minha instituição – o que, infelizmente, jamais aconteceu.

Nos anos seguinte, mantive contato à distância com o professor Leben. Quando nasceu minha filha, em 2017, gentil como sempre, ele exclamou: “Que bebê magnífico!” No mesmo ano, dediquei-lhe um livro, que publiquei em colaboração com a colega Virginie Tassin Campanella. Quando firmei o contrato de publicação da tese em dois livros, o professor Leben escreveu o prefácio.

Vez por outra, eu lhe fazia uma proposta de trabalho, mas ele estava sempre muito ocupado com seus estudos e sua saúde. Na última mensagem que recebi dele, em 1º de julho de 2020, ele me informou que estava escrevendo um novo livro e desejava que eu e minha família estivéssemos bem “neste momento tão difícil para o Brasil”. Eu não o sabia, mas era a nossa despedida.

Representante da tradição jurídica francesa, o professor Leben é o autor de uma obra excepcional. Para Alain Pellet, ele foi “o maior internacionalista de sua geração”. Além dos seus trabalhos em direito internacional, destacam-se também suas obras filosóficas, em especial aquelas dedicadas à crítica do kelsenianismo e aquelas sobre a cultura do direito hebraico.

Doutor em direito, em 1975, ao defender a tese intitulada “Les sanctions privatives de droits ou de qualité dans les organisations internationales spécialisées. Recherches sur les sanctions internationales et l’évolution du droit des gens”, publicada em Bruxelas, em 1979, o professor Leben iniciou sua carreira docente em Clermont-Ferrand, em 1977. Em seguida, em 1981, ele se mudou para Dijon a fim de se dedicar ao Centre de recherche sur le droit des marchés et des investissements internationaux (CREDIMI). Dez anos depois, ele se tornou professor da Faculdade de Direito da Université Panthéon-Assas Paris II, onde foi diretor do IHEI. Dezesseis anos depois, estava eu batendo à porta do seu gabinete…

Profundamente impactado com seu falecimento, rendo homenagem à memória do professor Leben, meu amigo.

Belo Horizonte, 22 de fevereiro de 2021

André de Paiva Toledo

Diretor do Instituto Brasileiro de Direito do Mar

 

*Carlo Santulli, em “In memoriam”, Revue Générale de Droit International Public, tomo CXXIV, nº 3-4, 2020, escreve que o professor Leben teria nascido na União Soviética, no Cazaquistão.

Share via
Copy link
Powered by Social Snap