A dupla vulnerabilidade das observadoras de bordo e a falta de coercitividade dos Direitos Humanos no regime do Direito do Mar
Por Julia Cirne Lima Weston, LL.M em Direito Internacional pela University College London &
Luciana Fernandes Coelho, estudante de doutorado na World Maritime University.
Em novembro de 2020 ambas as autoras apresentaram um artigo no IV Congresso do Instituto Brasileiro de Direito do Mar. O trabalho foi inspirado por um relatório publicado em junho de 2020, que demonstra a vulnerabilidade vivenciada pelos observadores de pesca.[1] Através de apontar as lacunas existentes em relação à proteção da vida e da integridade física dos observadores, assim como seus desafios, o artigo propôs aplicar o Direito Internacional dos Direitos Humanos à frágil situação destes trabalhadores. Nesta coluna a ser publicada no dia 8 de março de 2021, dia internacional da mulher, infelizmente verificamos uma das áreas nas quais há uma dupla vulnerabilidade em relação às mulheres: o caso das observadoras de bordo.
Em fevereiro de 2021, as notícias novamente demonstraram a situação de fragilidade encontrada por observadores de pesca, com a manchete “’Trapped’: Women Working as Fishery Observers Allege Sex Harassment, Assault at Sea” (“Presas: Mulheres Trabalhando como Observadoras de Pesca Alegam Assédio Sexual e Agressões no Mar”).[2] Esta triste notícia descreve as condições de trabalho preocupantes das observadoras de bordo ao monitorar a pesca na costa do Canadá.[3] O fato de que todas as entrevistadas eram mulheres apresenta uma dupla vulnerabilidade: constante assédio sexual e agressões enquanto performam seu trabalho, que já é arriscado por si só.[4]
A vulnerabilidade dos observadores de pesca tem sido bastante destacada através dos anos, porém, até hoje, poucas soluções foram alcançadas no âmbito internacional para que isto fosse remediado.[5] Embora a importância destes trabalhadores seja inegável, visto que possuem um papel duplo de monitorar o cumprimento com leis e de angariar informação científica – às vezes, sendo a fonte única desta – o regulamento aplicável à proteção ainda apresenta lacunas importantes.[6]
Por exemplo, a Convenção sobre o Trabalho em Pesca, da Organização Internacional do Trabalho, além de não ter muitos signatários, não é aplicável aos observadores.[7] A Convenção de Cape Town de 2012 é o único mecanismo a mencionar estes trabalhadores especificamente, porém não está em vigor, devido à falta da quantidade necessária de ratificações para tal.[8]
Embora se observe que esse tema tenha gerado ações frutíferas no âmbito de algumas das Organizações Regionais para a Gestão da Pesca (RFMOs, sigla em inglês) e no nível da atuação entre agências da Organização das Nações Unidas (por exemplo, o grupo de trabalho entre a OIT, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura- FAO, e a Organização Marítima Internacional – OMI), nenhum instrumento legal cogente está em vigor no momento para que haja a promoção dos Direitos Humanos desses trabalhadores.
Considerando a suma importância dos observadores, com seu papel dúplice de monitoramento do cumprimento com as leis de pesca e de coleta de dados de pesca, o artigo previamente mencionado sugere que as regras já existentes do Direito Internacional dos Direitos Humanos podem ser aplicadas de forma a garantir os direitos fundamentais desses trabalhadores.[9] A sugestão é de que isso pode ser feito através do uso do regime da jurisdição do Estado de bandeira, dentro do Direito do Mar, conforme explicado abaixo.[10]
De acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, Estados de bandeira devem aplicar a sua jurisdição aos seus navios registrados, inclusive em questões relacionadas a ‘assuntos sociais’, o que este artigo vê como abrangendo as condições sociais dentro de um navio.[11] Dessa forma, Estados de bandeira teriam a jurisdição exclusiva para garantir que os Direitos Humanos básicos fossem aplicados ao trabalho dos observadores de bordo.[12]
Dentro do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional para os Direitos Civis e Políticos (ICCPR) é o instrumento considerado mais adequado para a situação dos observadores.[13] Isto é devido ao seu grande número de signatários, que atualmente consistem de 173 Estados partes, assim como a possibilidade de aplicá-lo de forma extraterritorial, conforme preceituado pela Corte Internacional de Justiça (ICJ) e o Comitê dos Direitos Humanos.[14]
Considerando-se que os direitos do ICCPR são aplicáveis onde um Estado exerce jurisdição sobre pessoas, então o mesmo deve ser aplicado, de acordo com a decisão da ICJ no caso “Consequências Legais do Muro no Território Ocupado da Palestina”, assim como no Comentário Geral 31 do Comitê de Direitos Humanos.[15] Em especial para o presente debate, ao garantir o direito à vida, à dignidade da pessoa humana, assim como a prevenção de maus-tratos, o ICCPR representa importante mecanismo para atender às necessidades decorrentes da natureza arriscada deste trabalho, assim como as violações relatadas destes direitos, como o desaparecimento de observadores e agressões.[16]
A partir da configuração da jurisdição dos Estados de bandeira, as violações devem ser relatadas e investigadas. Isto torna mais difícil que os responsáveis pela embarcação aleguem que “não viram” quando as infrações ocorreram dentro dos seus navios registrados, entendimento baseado tanto em jurisprudência do Tribunal Internacional do Direito do Mar quanto do Comitê de Direitos Humanos.[17]
A utilização de um conjunto de regras já existentes dentro do Direito Internacional é apresentada como uma alternativa que poderia ser implementada em um prazo mais curto.[18] Porém, reconhece-se que o regime da responsabilidade do Estado de Bandeira tem suas fragilidades, tais como o obstáculo da soberania e a falta de um poder central que possa fazer com que Estados de bandeira cumpram com estas regras.[19]
Reconhece-se que o trabalho conjunto de organizações internacionais, tais como as RFMOS, a OIT e a OMI apresenta uma outra via para para abordar estas questões. Não obstante as soluções propostas, o objetivo premente desta coluna é colocar em destaque este problema dormente, um dos muitos não resolvidos dentro da interação entre o regime do Direito do Mar e do Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Você pode encontrar o capítulo do livro ao qual esta coluna referiu Capítulo Observadores de Bordo, para que possa ter um maior esclarecimento sobre o tópico e como ele foi abordado pelas autoras. Ademais, este é apenas um dos assuntos interessantes contidos no livro “Direito do Mar: Reflexões, Tendências e Perspectivas, v 4” da Editora D’Plácido, cuja leitura é essencial a toda a comunidade acadêmica engajada no tema do direito do mar.
[1] HUMAN RIGHTS AT SEA. Fisheries Observer Deaths at Sea, Human Rights & The role & Responsibilities of Fisheries Organisations. Disponível em: <https://www.humanrightsatsea.org/2020/07/03/report-fisheries-observer-deaths-at-sea-human-rights-and-the-role-and-responsibilities-of-fisheries-organisations/>, acesso em 18 de julho de 2020.
[2] VICE World News. ‘Trapped’: Women Working as Fishery Observers Allege Sex Harassment, Assault at Sea. Disponível em: <https://www.vice.com/amp/en/article/jgqnag/trapped-women-working-as-fishery-observers-allege-sex-harassment-assault-at-sea?__twitter_impression=true&s=08>, acesso em 1º de março de 2021.
[3] ibid.
[4] Ibid.
[5] COELHO, Luciana F.; WESTON, Julia CL. Who Observes the Onboard Observers Working in the Waters Adjacent to the Pacific Small Islands Developing States? The Flag State Responsibility for Violation of Human Rights at Sea. In: André de Paiva Toledo et al (orgs.). Direito do Mar: reflexões, tendências e perspectivas, v. 4. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2020.
[6] ibid; HUMAN RIGHTS AT SEA. Fisheries Observer Deaths at Sea, Human Rights & The role & Responsibilities of Fisheries Organisations. Disponível em: <https://www.humanrightsatsea.org/2020/07/03/report-fisheries-observer-deaths-at-sea-human-rights-and-the-role-and-responsibilities-of-fisheries-organisations/>, acesso em 18 de julho de 2020.
[7] INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION. C188 – Work in Fishing Convention, 2007 (No. 188). Disponível em: <https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_ILO_CODE:C188>, acesso em 21 de julho de 2020.
[8] INTERNATIONAL MARITIME ORGANIZATION. Consolidated text of the regulations annexed to the torremolinos protocol of 1993 relating to the torremolinos international convention for the safety of fishing vessels,1977, As modified by the capetown agreement of 2012 on the implementation of the provisions of the torremolinos protocol of 1993 relating to the torremolinos international convention for the safety of fishing vessels,1977(Agreement). Disponível em: <http://www.imo.org/en/About/Conventions/ListOfConventions/Documents/Consolidated%20text%20of%20the%20Agreement.pdf>, acesso em: 21 de julho de 2020, art. 2(4) e chapter VI; THE PEW CHARITABLE TRUST. The Cape Town Agreement Explained How one international treaty could combat illegal fishing and save lives. Disponível em: <https://www.pewtrusts.org/-/media/assets/2019/09/ctaexplained_brief.pdf>, acesso em 22 de julho de 2020.
[9] COELHO, Luciana F.; WESTON, Julia CL. Who Observes the Onboard Observers Working in the Waters Adjacent to the Pacific Small Islands Developing States? The Flag State Responsibility for Violation of Human Rights at Sea. In: André de Paiva Toledo et al (orgs.). Direito do Mar: reflexões, tendências e perspectivas, v. 4. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2020.
[10] ibid; UNITED NATIONS. United Nations Convention on the Law of the Sea of 1982. Disponível em: < https://www.un.org/depts/los/convention_agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf>, acesso em 20 julho de 2020, art. 94.
[11] ibid.
[12] ibid.
[13] ibid.
[14] Ibid.
[15] ibid; UNITED NATIONS HUMAN RIGHTS COMMITTEE. General Comment 31. Disponível em: < https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=CCPR%2fC%2f21%2fRev.1%2fAdd.13&Lang=en> , acesso em 30 de julho de 2020; INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Legal Consequences of the Construction of a Wall in the Occupied Palestinian Territory. Disponível em: < https://www.icj-cij.org/en/case/131> , acesso em 20 de julho de 2020.
[16] ibid.
[17] ibid.
[18] ibid.
[19] ibid.