Cercado por controvérsias, o julgamento da CIJ no caso “Maritime Delimitation in the Indian Ocean”, finalmente ocorrerá em Março.
Em 28 de Agosto de 2014, o Governo da República Federal da Somália, instituiu procedimentos contra a República do Quênia em relação a uma disputa marítima em sua fronteira no Oceano Índico. O caso tem como propósito o estabelecimento de uma divisa náutica entre a Somália e o Quênia, no Oceano Índico, delimitando o mar territorial, a zona econômica exclusiva (ZEE) e a plataforma continental, de cada Estado, incluindo a plataforma além das 200 milhas náuticas (M).[1]
Em seu Application instituindo os procedimentos, a Somália reivindicou que o direito aplicável à disputa seriam a Convenção de Montego Bay (UNCLOS), a qual foi ratificada por Somália e Quênia em Julho e em Março de 1989, respectivamente, e o direito internacional consuetudinário – ambas fontes do Direito Internacional reconhecidas no artigo 38.1 do estatuto da CIJ.[2] O caso foi apresentado pela Somália com base na declaração feita sob o artigo 36.2 do Estatuto da Corte, por ambos Estados, concedendo jurisdição compulsória à Corte.
Após diversas objeções preliminares levantadas pelo Quênia em 7 de Outubro de 2015[3], a Corte decidiu, no julgamento de 2 de Fevereiro de 2017, que as submissões do Quênia não procediam e declarou possuir competência para apreciar os méritos do caso.[4] Em seus pedidos, a Somália requer que a fronteira marítima entre as partes seja delimitada no mar territorial, na ZEE, e na plataforma continental, a partir dos artigos 15, 74 e 83 da Convenção de Montego Bay, respectivamente.
No mar territorial, afirma que a divisa deve ser uma linha média, como especificado no artigo 15, considerando que não existem nenhuma circunstância particular que justifique a não utilização deste método. Na ZEE e na plataforma continental, argumenta que a fronteira deve ser estabelecida através do processo de três etapas[5] que a Corte constantemente utiliza ao aplicar os artigos 74 e 83 da Convenção.
O Quênia, em contrapartida, sustenta que a divisa marítima deveria ser uma linha reta emanando do encontro da fronteira territorial dos Estados. Essa linha se estenderia a leste, ao longo do paralelo em que a fronteira territorial se localiza, através de toda a extensão do mar territorial, da ZEE e da plataforma continental, incluindo a plataforma além das 200 M. Com base nas delimitações que acredita serem as corretas, o Quênia ofereceu blocos de exploração petrolífera para companhias de Petróleo. No entanto, a Somália afirma que alguns destes blocos, oferecidos pelo Quênia, se localizam dentro do seu lado da fronteira e que possui interesse nestes.
Nesse sentido, o pedido da Somália para a CIJ foi pela delimitação, com base no Direito Internacional, do curso completo de uma única divisa marítima, limitando todas as áreas oceânicas pertencentes a ambos Estados no Oceano Índico, incluindo a plataforma continental além de 200 M. Recentemente, após várias decisões adiando o julgamento, a Corte decidiu que os procedimentos orais do caso devem acontecer em 15 de Março de 2021.[6]
Entretanto, o caso – e a decisão de finalmente apreciá-lo – tem causado perturbações em alguns membros da comunidade internacional, que acreditam que uma decisão da CIJ pode trazer instabilidade política para a região. O Fórum Pan-Africano escreveu para o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, pedindo a intervenção deste, no caso entre o Quênia e a Somália, com o objetivo de adiá-lo novamente. Na opinião do líder do Fórum, David Matsagana, os procedimentos na CIJ poderiam incitar tensões e novos conflitos na região, que já se encontra fragilizada por conta de instabilidades diplomáticas entre os dois países.[7]
Em sua carta, o Fórum afirma que existem “milhões de Africanos, no leste da África e no chifre da África, que estão preocupados com o caso Quênia/Somália na CIJ”[8] e que qualquer decisão emitida pela Corte iria “acender uma guerra perversa na região onde o conflito da Somália ainda persiste”[9]. Além disso, o Fórum sustenta que o Presidente da Somália, Sr. Mohamed Abdullahi Mohamed, está apenas buscando usar uma possível vitória judicial na CIJ como uma “medida desesperada de cobrir suas imensas falhas domésticas”[10].
No que tange uma avaliação prospectiva da decisão da Corte, é provável que a metodologia das três etapas seja utilizada para delimitar as fronteiras, ao menos que a Corte concorde com o Quênia que um limite (ao longo do paralelo da latitude) já exista entre as partes.[11] No caso “Black Sea”, a Corte considerou que sempre aplicaria a metodologia, exceto quando existirem “razões convincentes” de que o método equidistante seja inviável em casos particulares.[12] Por “inviável”, a Corte se refere a uma impossibilidade de desenhar uma linha equidistante. Uma decisão similar foi tomada no caso entre Nicarágua e Honduras, onde a Corte escolheu não aplicar o método.[13]
Outrossim, o ex-presidente da CIJ, Juiz Guillaume, anteriormente, já afirmou que “Em todos os casos, a Corte (…) deve primeiro determinar provisoriamente uma linha equidistante. Após, deve se perguntar se existem circunstâncias especiais ou relevantes que requeiram que esta linha seja ajustada com o objetivo de atingir resultados equitativos.”[14]. Nesse sentido, o Tribunal Internacional do Direito do Mar, recentemente, também aplicou a metodologia das três etapas no caso da delimitação marítima entre Gana e a Costa do Marfim, classificando-a como a “abordagem estabelecida.”[15].
Diante disso, os procedimentos orais que irão acontecer, neste mês de Março, na Haia, são bastante aguardados pelos Estados partes e por membros da comunidade internacional. A questão relativa a se a Corte vai manter sua jurisprudência consolidada e aplicar o método equidistante, ou se será convencida pelo Quênia que uma fronteira já existe entre os Estados, será respondida, e as consequências políticas da decisão da Corte vão se desdobrar. Certamente, essa será uma decisão marcante no campo do Direito do Mar.
Por Augusto Guimarães Carrijo, graduando em Direito na Universidade Federal de Uberlândia, sob a orientação do Dr. Felipe Kern Moreira, diretor do IBDMAR.
[1] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Maritime Delimitation in the Indian Ocean (Somalia v Kenya). Application instituting proceedings (2014). Available at: https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/161/161-20140828-APP-01-00-EN.pdf.
[2] UNITED NATIONS. Statute of the International Court of Justice, 18 Apr. 1946. Available at: https://www.icj-cij.org/en/statute.
[3] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Maritime Delimitation in the Indian Ocean (Somalia v Kenya). Preliminary objections of Kenya (2015). Available at: https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/161/19074.pdf.
[4] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Maritime Delimitation in the Indian Ocean (Somalia v Kenya). Judgment (2017). Available at: https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/161/161-20170202-JUD-01-00-EN.pdf.
[5] De acordo com a Somália, através do método das três etapas, cortes e tribunais devem (1) desenhar uma linha equidistante provisória; (2) determinar se existem “circunstâncias relevantes” que tornem a linha equidistante provisória inadequada; e (3) testar a linha delimitadora proposta para determinar se resulta em uma desproporção grave.
[6] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Maritime Delimitation in the Indian Ocean (Somalia v Kenya). Press release 2020/13. Available at: https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/161/161-20200522-PRE-01-00-EN.pdf.
[7] CAPITAL NEWS. Pan African Forum Wants ICJ To Defer Kenya-Somalia Maritime Dispute For Fear Of Fresh Tensions. 17 feb. 2021. Available at: https://www.capitalfm.co.ke/news/2021/02/pan-african-forum-wants-icj-to-defer-kenya-somalia-maritime-dispute-for-fear-of-fresh-tensions/.
[8] PAN AFRICAN FORUM. Deferral of the Kenya /Somalia Maritime Dispute in (ICJ). Letter to Sir Antonio Gutierres, 16 fev. 2021. Disponível em: http://www.panafricanforumltd.com/Deferral_Of_The_Kenya_Somalia_Maritime_Dispute.html. “millions of Africans in East Africa and in the Horn of Africa regions who are worried about the Kenya/Somalia case at ICJ”
[9] Ibidem. “spark a vicious war in the region where the conflict of Somalia still ranges on”
[10] Ibidem. “desperate attempt to cover his immense failures at home”
[11] OLORUNDAMI, Fayokemi. The Kenya/Somalia Maritime Boundary Delimitation Dispute. Em: YIHDEGO, Z.; DESTA, M; HAILU, M.; MERSO, F (org.). Ethiopian Yearbook of International Law. Cham: Springer, 2017, pp. 173-185. p. 180
[12] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Maritime Delimitation in the Black Sea (Romenia v. Ukraine), Judgment, (2009), para. 106. Disponível em: https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/132/132-20090203-JUD-01-00-EN.pdf.
[13] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE, Maritime Dispute between Nicaragua and Honduras in the Caribbean Sea (Nicaragua v. Honduras), Judgment, (2007) ICJ Rep 659, para 277
[14] GUILLAUME, GILBERT. Statement made by Judge Guillaume to the Sixth Committee of the General Assembly of the United Nations. 2001. “In all cases, the Court (…) must first determine provisionally the equidistance line. It must then ask itself whether there are special or relevant circumstances requiring this line to be adjusted with a view to achieving equitable results.”
[15] ITLOS, Dispute Concerning Delimitation of the Maritime Boundary between Ghana and Côte D’Ivoire in the Atlantic Ocean (Ghana/Côte D’ivoire) Judgment, (2017) para 402.