Uma Década e Tanto
Por Bruno Costelini
Oceanógrafo e doutorando em direito pela Universidade de Durham, Reino Unido
A década de 1920 costuma ser celebrada como um período de efervescência cultural e grande criatividade no ocidente. Movimentos literários floresciam, o cinema popular e de arte explodiam e inovações tecnológicas como o rádio mudavam completamente a maneira como a comunicação de massa funcionava. E até mesmo no preguiçoso mundo do Direito Internacional, a criação da Liga das Nações significou uma mudança de paradigma, com as suas tentativas de atacar alguns dos problemas remanescente da Grande Guerra e de estabelecer uma nova ordem baseada em acordos multilaterais.
Uma dessas preocupações da Liga por um acaso foi com os oceanos. Evidências dos efeitos deletérios da sobrepesca já se acumulavam há algum tempo, desde que os primeiros institutos oceanográficos e de pescarias haviam sido criados em fins do século XIX, juntando dados suficientes para embasar políticas e regulações. A caça de baleias era uma dessas grandes questões, uma vez que as grandes nações baleeiras da época, que as usavam na fabricação de óleos e sabões (a Noruega e o Reino Unido), já haviam esgotado os estoques do Atlântico Norte e agora se dirigiam em direção aos mares do sul, principalmente ao mar da Antártida.
A Liga então formou um “comitê de experts” para estudar não só esse problema em particular, mas para preparar uma “progressiva codificação do Direito Internacional”, tentativa pioneira que, como sabemos, não logrou grandes resultados. A seção de “Direito do Mar” desse comitê foi liderada pelo jurista argentino José León Suárez, um grande defensor de um maior rigor científico e técnico no tratamento desses assuntos.[1]
Em seu relatório final de 1927 Suárez fez essa interessante sugestão, que cito textualmente: “As riquezas do mar, em especial as riquezas da região Antártica, constituem um patrimônio da humanidade, e nossa Comissão, constituída pela Liga das Nações, está totalmente a favor de propor ao Governo um plano de ação antes que seja tarde demais”.[2]
Duas coisas se destacam aqui. Primeiro, essa foi possivelmente a primeira referência direta que se fez aos recursos marinhos como “patrimônio da humanidade” como uma proposta de acordo internacional. Embora frequentemente citemos o discurso de Arvid Pardo na Assembleia Geral da ONU de 1967 como o propulsor da instituição do Patrimônio Comum da Humanidade (hoje aplicado apenas aos recursos minerais do assoalho marinho, além da Lua, conforme o Tratado da Lua, mas não à Antártida, curiosamente), a proposta de Suárez foi com efeito a primeira a aparecer em uma instituição multilateral, embora claramente não tenha sido bem sucedida.
Segundo, o chamado à ação, “antes que seja tarde demais”, o que parece ser um tema recorrente dentro da Comunidade Internacional, uma vez que estamos sempre correndo atrás do prejuízo e tentando corrigir situações sempre à beira do desastre. É preciso notar que nesse caso nenhuma atitude foi tomada, e que o problema da caça às baleias só se resolveu por si mesmo quando os estoques atingiram níveis tão baixos que já não era mais lucrativo cruzar meio muito para fazer a captura. Naquela altura, contudo, a invenção de novas técnicas de produção de sabão e óleo tornou o uso da gordura das baleias desnecessário, e a indústria se modificou para utilizar fontes de óleos vegetais. (As populações de baleias, contudo, nunca se recuperaram totalmente e só após décadas de moratórias escaparam do risco de extinção). E o resto é História, como se diz.
Corta para cem anos mais tarde, e aqui estamos, entrando na “Década das Nações Unidas da Ciência dos Oceanos para o Desenvolvimento Sustentável”, uma nova década de ouro talvez, mas com alguns dos mesmos problemas e o mesmo receituário de antes. Essa tem sido saudada como uma oportunidade única de reunir esforços de cientistas, focar nas grandes questões (poluição marinha, acidificação dos oceanos, aumento do nível do mar, escolha sua briga!) e finalmente tentar resolvê-las com experts e dados, e tudo que a melhor evidência cientifica tem a oferecer, pois parece que mais uma vez, estão à beira de um desastre (ou vários).
Será que finalmente vamos fazer alguma coisa antes que seja tarde demais? Só o tempo dirá. Mas vamos manter as esperanças. Se a década de 1920 nos trouxe o talento de Ernest Hemingway, Charlie Chaplin, as dancinhas de Charlestos, e toda aquela maravilhosa herança dos modernistas, quem sabe os anos 2020 não sejam outra década e tanto, colocando-nos para dançar no ritmo da ciência e da razão. Por que não?
[1] A história de Suárez e da Liga das Nações é extraída de um artigo ainda não publicado de Zsofia Korosy, discutido num workshop da Universidade de Tecnologia de Sydney em dezembro de 2020.
[2] Les richesses de la mer, en particulier les richesses immenses de la région antarctique, constituent un patrimoine de l’humanité, et notre Commission, constituée par la Societé des Nations, est tout indiquée pour proposer au Gouvernement un moyen d’action avant qu’il ne soit trop tard.”
Apud Scovazzi, Tulio ‘The Concept of Common Heritage of Mankind and the Genetic Resources of the Seabed Beyond the Limits of National Jurisdiction’ Agenda Internacional 15, XXV, 2007.