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19 janeiro 2021

O Federalismo e os espaços marítimos brasileiros: Nunes Marques decide a favor da União

      No dia 15 de dezembro de 2020, o recém-empossado Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kássio Nunes Marques decidiu liminarmente pela suspensão de dispositivos da Lei que institui a Política Estadual de Desenvolvimento Sustentável da Pesca no Estado do Rio Grande do Sul (Lei 15.223/2018).[1] A decisão foi feita após pedido de reconsideração apresentado pelo Partido Liberal, entidade que movera a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN).[2] Há pouco mais que um ano, Celso de Mello, substituído por Nunes Marques, havia indeferido o pedido de medida cautelar.[3]

      Os artigos 1º, parágrafo único, e 30, VI, “e”, que tiveram sua eficácia suspensa, proibiam a pesca de arrasto conduzida por embarcações motorizadas nas “12 milhas náuticas da ‘faixa marítima da zona costeira do Estado’”. Sucintamente, toda a discussão gira em torno da inconstitucionalidade formal orgânica da Lei 15.223, limitada pela ADIN aos referidos dispositivos. 

      Por um lado, tem-se que o mar territorial, correspondente às “12 milhas náuticas…” é bem da União, artigo 20, VI, CFRB, e, portanto, debate-se se esta teria competência privativa para legislar no que seja atinente ao mar territorial. Por outro, observa-se que compete à União e aos estados legislar concorrentemente sobre “florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição”, artigo 24, VI, CFRB. Em regra, a competência da União é para editar normas gerais e a dos Estados, suplementar, levando em conta aspectos regionais específicos.

      Sobre o primeiro ponto, o Marques trouxe à baila, também, o artigo 48, V, segundo o qual cabe ao Congresso Nacional “dispor de matérias de competência da União, especialmente sobre limites do território nacional, espaço aéreo e marítimo e bens de domínio da União”. Este dispositivo se torna relevante, porque o Eminente Ministro reconhece a existência de numerosos precedentes do STF no sentido da competência legislativa concorrente neste tipo de caso, de forma a permitir lei estadual mais protetiva. [4] Dito isto, ele promove um distinguishing: no caso em análise, a lei estadual tratou do “limite do mar territorial”. Marques não elaborou mais sua conclusão, mas chegou a afirmar que o mar territorial “se insere no conceito de soberania da União”. [5] 

      Para além da aparente atecnia (a União não é soberana, apenas representa a federação), o ministro, na realidade, não parece se desvincular da jurisprudência do Supremo. Na decisão anterior, com mais referências aos precedentes do Tribunal, Celso de Mello usou uma boa quantidade de páginas –– e autoridades –– para asseverar que mar territorial é um bem dominial da União, mas não entra no conceito de território. Por exemplo, bens da União localizados nos territórios de Estados ou Municípios ainda se sujeitam, em larga medida, ao império dos outros entes federativos. Similarmente, o mar territorial se sujeita ao exercício das competências constitucionais dos estados nos seus territórios e nas projeções marítimas de suas costas –– não haveria território que não estivesse sob competência de algum estado da federação, com a notável exceção dos hoje inexistentes territórios federais.[6] 

      Marques, ao fim e ao cabo, parece concordar com esta perspectiva, mas traz uma diferença que pode ser essencial ao dizer que a lei estadual tratou do “limite do mar territorial”. O Ministro não é claro. Apenas lança a afirmação. Com efeito, legislar sobre limites do espaço marítimo é competência privativa da União, de acordo com o já citado artigo 48, V, CFRB. Entretanto, fica a questão: em que momento a Lei 15.223/2018 do Rio Grande do Sul tratou do “limite do mar territorial”?

      A expressão “mar territorial” só é encontrada no texto da Lei em duas ocasiões: (i) na sua definição, conforme a Lei 8.617/1993, e (ii) nos objetivos da lei, em que menciona “território do Estado do Rio Grande do Sul, incluindo o mar territorial”. Neste ponto, não diverge da jurisprudência do STF.[7] No entanto, ao observar-se os dispositivos impugnados na ADIN, nota-se de fato uma nova figura. A transcrição é útil:

Art. 1º. Parágrafo único. Esta Lei é aplicável a toda atividade de pesca exercida no Estado do Rio Grande do Sul, incluindo a faixa marítima da zona costeira, em conformidade com o disposto no art. 3°, inciso I, do Decreto Federal n° 5.300, de 7 de dezembro de 2004, e no art. 1° da Lei Federal n° 8.617, de 4 de janeiro de 1993.

 Art. 3º. É proibida a pesca:

VI – Mediante a utilização de:

e) toda e qualquer rede de arrasto tracionada por embarcações motorizadas, em todo território do Estado do Rio Grande do Sul, incluindo as 12 milhas náuticas da faixa marítima da zona costeira do Estado. (Grifo nosso).

      São as únicas ocasiões em que a expressão “faixa marítima da zona costeira do Estado” aparece. A primeira deixa dúvidas sobre o que é de fato. A segunda faz implícita, mas evidente, referência ao mar territorial. Ora, o Estado do Rio Grande do Sul, por esta lei, passa a ter uma faixa marítima da zona costeira com 12 milhas náuticas? Parece haver duas respostas possíveis: (i) sim, e aí haveria usurpação da competência da União; e (ii) não, pois a Lei simplesmente toma por referência os espaços marítimos já existentes. Aliás, sob a perspectiva da segunda resposta, a faixa poderia ter qualquer número de milhas náuticas de extensão, até 200 milhas náuticas –– não precisaria ser exatamente 12 nem 200 milhas. 

      Aceitando a primeira resposta, nem se precisaria entrar na questão das competências concorrentes. Porém, mesmo inclinando-se para ela, Marques continua à exaustão dos fundamentos.  Adentrando na discussão das competências concorrentes, o julgador deve analisar o espectro de normas gerais, cabendo aos estados a suplementação normativa.

Levando isto em consideração, o eminente Ministro traz destaque para duas expressões normativas federais: a Portaria 26/1983 da extinta Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE) e o Projeto Manejo Sustentável da Fauna Acompanhante na Pesca de Arrasto na América Latina e Caribe – REBYC II-LAC, da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e de que o Brasil faz parte por meio da Secretaria de Aquicultura e Pesca. Para o Ministro, a primeira representa norma geral da União e a segunda, demonstração de eficaz política pública a nível federal, mas com enfoque no Rio Grande do Sul, que garantiria a improbabilidade de dano inverso, no caso da suspensão da lei estadual.

      Antes de abordar concretamente a lei gaúcha, Marques põe em relevo o artigo 3º, § 2º, da Lei Federal 11.959/2009: “compete aos Estados e ao Distrito Federal o ordenamento da pesca nas águas continentais de suas respectivas jurisdições, observada a legislação aplicável”. Como águas continentais não incluem o mar, a Lei 15.223/2018/RS estaria indo além da competência suplementar do estado. No entanto, tal interpretação do dispositivo da lei federal de pesca e aquicultura fatalmente estaria restringindo a competência legislativa concorrente prevista na Constituição Federal, que não faz distinção alguma entre águas interiores e marinhas –– fala apenas em pesca.

      Empenha-se, por fim, em analisar a Portaria 26/1983 da SUDEPE e o Projeto REBYC II-LAC. A portaria da SUDEPE tem fundamento legal na Lei 13.844/2019, que organiza o executivo federal.  Sua passagem relevante é a seguinte: 

Art. 2° Proibir a pesca com a utilização de redes de arrasto de qualquer tipo, a menos de 3 (três) milhas da costa do Estado do Rio Grande do Sul. Parágrafo Único – Ficam excluídas desta proibição às redes de arrasto de praia, desde que possuam malha de 100 mm (cem milímetros), medida tomada entre ângulos opostos da malha esticada, e sejam arrastadas sem tração mecânica. 

      Este artigo trata, de fato, da exata mesma matéria que os dispositivos impugnados, mas contém duas diferenças: (i) na lei atacada, apenas embarcações motorizadas não podem pescar utilizando redes de arresto e (ii) a proibição se estende por 12 milhas náuticas.[8] Uma comparação despretensiosa coloca a legislação gaúcha em conflito com a norma da União.

      A Portaria 26 não foi abordada na decisão do Ministro Celso de Mello, mas ele destaca o caráter mais protetivo da lei estadual, por uma série de fatores. Inicialmente, salta mais aos olhos a vigência de uma Portaria de 1983. Além disso, a Lei 15.223/2018 ainda tem grande base científica, sobretudo por contribuição da Universidade Federal do Rio Grande, e sua redação teve participação dos principais atores afetados. Não se pretende entrar aqui no mérito do caráter mais protetivo da norma estadual; por enquanto, importa saber que a jurisprudência do STF reconhece a constitucionalidade de normas estaduais que confrontam normas federais, quando houver competências concorrentes, se a lei estadual for mais protetiva ao meio ambiente. [9]

      Ademais, a legislação dos pormenores por parte da União, em competência concorrente, principalmente se se referir a algum estado em específico, provavelmente está usurpando a competência suplementar dos estados membros. Para Celso de Mello, a norma geral está na Lei da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca (Lei 11.959/2009): 

Art. 6º O exercício da atividade pesqueira poderá ser proibido transitória, periódica ou permanentemente, nos termos das normas específicas, para proteção:

I – de espécies, áreas ou ecossistemas ameaçados;

II – do processo reprodutivo das espécies e de outros processos vitais para a manutenção e a recuperação dos estoques pesqueiros;

1ºSem prejuízo do disposto no caput deste artigo, o exercício da atividade pesqueira é proibido:

VII – mediante a utilização de:

d) petrechos, técnicas e métodos não permitidos ou predatórios. (grifo nosso)

      Deveras, estes dispositivos estão mais próximos do que pode considerar-se “normas gerais” do que o Artigo 2º da Portaria 26 da SUDEPE. Além disso, a Lei gaúcha está totalmente de acordo com a norma supramencionada da Lei da Pesca.

      Por sua vez, o REBYC II-LAC é visto pelo Ministro Marques como uma demonstração de que não há perigo de grande dano inverso, em razão da concessão do pedido em liminar. Evidentemente, pela própria natureza do projeto, não poderia ser encarado como norma geral federal. Sobre o caráter mais protetivo da Lei gaúcha e sobre o perigo de dano inverso, o leitor mais atento às ciências marinhas pode tomar suas próprias conclusões. [10]

      Finalmente, tem-se que tanto Celso de Mello como Kássio Nunes analisaram o caso em sede de pedido liminar, com uma cognição mais superficial do mérito, satisfazendo-se com a fumus boni juris. No entanto, suas decisões trouxeram elementos que certamente serão centrais para os debates em plenário: (i) a União tem competência privativa para legislar sobre tudo que diz respeito ao mar territorial? (ii) A lei gaúcha legislou sobre limites de espaço marítimo?; (iii) Qual é a norma geral? (vi) A lei gaúcha a suplementa ou é compatível com a norma geral?; (v) Caso não, considerando a cooperação federativa, a lei gaúcha é mais protetiva ambientalmente?

Texto escrito por Eduardo Cavalcanti de Mello Filho, estagiário do Instituto Brasileiro de Direito do Mar, sob a supervisão de Felipe Kern Moreira, diretor do Instituto.


[1] Confira a decisão: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15345280110&ext=.pdf>. Acesso em: 19 dez. 2020.

[2] Há muitas entidades envolvidas, incluindo defensoria, ministério público –– de diferente estados ––, ONGs, associações (como amici curiae), estados e municípios. A indústria da carcinicultura catarinense tem demonstrado muito interesse, também, e são os principais beneficiados com a decisão de Nunes Marques.

[3] Confira a decisão: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6218cautelar.pdf. Acesso em 19 dez. 2020.

[4] Ele cita especificamente a ADI 5.996, Rel. Min. ALEXANDRE DE MORAESs, DJE de 30/4/2020). Mas, no mesmo sentido, veja-se: ADI 3.937-MC, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, DJE de 10/10/2008; RE 194.704 ,Rel. para Acórdão Min. EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgamento concluído em 29/6/2017.

[5] “Reconheço que há precedentes desta Corte no sentido de se reconhecer a competência legislativa concorrente e, assim, permitir lei estadual mais protetiva em razão do fortalecimento do equilíbrio federativo (ADI 5.996, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe de 30.4.2020). Contudo, no caso concreto, há característica relevante que o distingue daquela situação. Aqui, tratamos de conferir constitucionalidade à lei estadual que tratou de limite de mar territorial. E o mar territorial – que se insere no conceito de soberania da União, é tratado pelo art. 2º,  inc. X, da Lei Federal n. 11.959/2009, também para fins de pesca”. ADI 6218. Rel. Min. KÁSSIO NUNES MARQUES, DJE nº 293, 15.12.2020, p. 7.

[6] ADI 6218. Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJE nº 290, 16/12/2019, pp. 32-33.

[7] ADI 2080. Rel Min. GILMAR MENDES, DJE nº 242, 05/11/2019.

[8] Note-se, também, que, à época, em 1983, o Brasil tinha um mar territorial de 200 milhas náuticas, segundo o Decreto-lei 1098/1970, revogado pela Lei 8.617/1993, a lei do mar brasileiro. Mesmo assim, a referência a “3 milhas” não significou a criação de um espaço marítimo, como se pode pensar da lei gaúcha usando a expressão faixa marítima da zona costeira.

[9] Cf. Nota [4]

[10] Este curto texto tem um viés mais jurídico. No entanto, é a opinião do autor que a Lei 15.223/2018 do Rio Grande do Sul é de fato mais protetiva. Tem grande base científica, desenvolvida sobretudo pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Em sua decisão, Celso de Mello transcreve considerações de especialistas da FURG, a partir da página 25. Em contrapartida, a menção feita por Nunes Marques à Portaria de 1983 vem acompanhada das seguintes palavras: “houvesse violação à proteção ao meio ambiente, certamente a União teria, por si, aumentado o limite de proibição de 3 milhas náuticas”. Também se demonstra muito confiante no Projeto REBYC II-LAC, sem, contudo, apresentar dados e prognósticos como os da FURG.

 

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