O CASO DO ‘NAVE ANDROMEDA’ E A SUA EXPOSIÇÃO DE IMPORTANTES FRAQUEZAS DO REGIME DO DIREITO DO MAR
Por Julia Cirne Lima Weston
Mestre em Direito Internacional pela University College London, Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
É provável que quem se mantém atualizado em Direito do Mar tenha ouvido do muito noticiado caso do navio Nave Andromeda, o qual navegava sob a bandeira da Libéria. O petroleiro se encaminhava à Europa, oriundo do porto de Lagos, Nigéria.[1]
Houve primeiramente a recusa por parte da Espanha e da França de deixar o navio atracar em seus portos.[2] Apenas após uma suspeita de sequestro do navio por parte dos passageiros, foi permitido que o navio atracasse no porto de Southampton, Inglaterra.[3] Ainda há controvérsias se realmente ocorreu o sequestro, visto que há relatos de que o navio permaneceu sob controle do seu capitão em todos os momentos.[4] Houve, porém, preocupação em relação à segurança da tripulação após a exigência por parte dos passageiros de que desembarcassem na Europa e alegadas ameaças verbais.[5]
Não é incomum que haja incidentes de passageiros clandestinos, ou stowaways em navios, visto que é um meio encontrado por migrantes de se locomoverem até seus portos de destino para lá eventualmente pedirem asilo ou refúgio.[6] É possível que seja o caso dos sete passageiros do Nave Andromeda, o que está sendo investigado pelas autoridades britânicas.[7] Há, porém, investigações também no sentido de que haveria ocorrido a tentativa de se apossar do navio por meio do uso de força e, neste caso, seriam aplicadas as devidas penalidades criminais.[8]
O caso do Nave Andromeda não é o primeiro, nem provavelmente será o último caso de stowaways em navios. De acordo com números fornecidos por Clubes de P&I, foram 1420 passageiros clandestinos em 432 incidentes apenas no ano de 2017.[9] O incidente, porém, trouxe à tona importantes questões reguladas pelo Direito do Mar e Marítimo, assim como do Direito Internacional no geral. Este breve artigo irá brevemente contextualizar algumas delas.
Primeiramente, de acordo com os procedimentos revisados da Organização Marítima Internacional (OMI) em relação a stowaways, estes devem ser admitidos ao primeiro porto ciente da existência destes, para que sejam examinados.[10] Caso comprovado que havia a ciência por parte da Espanha e da França de que havia clandestinos quando houve a recusa de desembarque destes, haveria uma prática contrária ao recomendado pelos procedimentos da OMI.[11] É importante, porém, de ressaltar que o regime do Direito do Mar dá autonomia aos Estados portuários para decidir a respeito da entrada de navios em seus portos e águas internas.[12]
Houve também grande preocupação, no caso do Nave Andromeda, no sentido de que este navio fez passagem pelo Golfo da Guiné, região na qual a pirataria é conhecidamente um problema de grandes dimensões.[13] Enquanto há regulamentações na Convenção das Nações Unidas para evitar a pirataria e investiga-la, há a necessidade também de fomentar a cooperação internacional em segurança marítima, o que é enfatizado não apenas pela OMI[14], mas também por outros órgãos da ONU, além do grande respaldo da comunidade acadêmica . O ocorrido neste caso evidencia, portanto, a necessidade de maior articulação do tema.
Há também considerações de Direitos Humanos que devem ser destacadas no caso de passageiros clandestinos, devido à incidência concomitante de um direito ao refúgio e do direito à vida, tanto da tripulação quanto dos próprios clandestinos. O arcabouço internacional de Direitos Humanos, mais precisamente o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), protege indivíduos de ameaças ao seu direito à vida e de maus-tratos.[15] Este é aplicável a 173 Estados Partes internacionalmente, possuindo, assim, ampla aderência no plano internacional.[16]
Em termos do Direito dos Refugiados, é importante também ressaltar que, ao se permitir o desembarque de clandestinos, estes, por mais que tenham chegado de forma irregular ao seu porto de destino, têm direito de pedir refúgio. A própria Convenção da OMI prevê que as disposições no que tange ao refúgio devem ser observadas em relação a clandestinos.[17] Isto ocorre, pois a Convenção de Genebra, assim como os demais tratados legais regionais, confere este direito aos solicitantes de refúgio, à não criminalização da sua chegada.[18] No caso do refúgio, é indispensável que haja esta anistia, visto que muitos irão fugir sem a documentação necessária, ou pelos meios disponíveis no momento.
O caso do Nave Andromeda não é, portanto, uma exceção e expôs pontos delicados nos quais ainda há falhas na regulamentação legal. Espera-se que o destaque trazido pelo caso a estas questões contribua para o seu desenvolvimento futuro e o melhoramento tanto das regulamentações aplicáveis à indústria marítima quanto ao respeito pelos Direitos Humanos.
[1] LLOYD’S LIST. Stowaways held as UK special forces end tanker ‘security incident’. Disponível em: <https://lloydslist.maritimeintelligence.informa.com/LL1134388/Stowaways-held-as-UK-special-forces-end-tanker-security-incident>, acesso em 27 de novembro de 2020.
[2] THE TIMES. France and Spain turned away Nave Andromeda oil tanker carrying stowaways. Disponível em: <https://www.thetimes.co.uk/article/france-refused-to-accept-nave-andromeda-oil-tanker-stowaways-cj2l3fsdk>, acesso em 27 de novembro de 2020..
[3] LLOYD’S LIST. Stowaways held as UK special forces end tanker ‘security incident’. Disponível em: <https://lloydslist.maritimeintelligence.informa.com/LL1134388/Stowaways-held-as-UK-special-forces-end-tanker-security-incident>, acesso em 27 de novembro de 2020.
[4] EJIL TALK. The Nave Andromeda and the seven stowaways. Disponível em: <https://www.ejiltalk.org/the-nave-andromeda-and-the-seven-stowaways/>, acesso em 27 de novembro de 2020.
[5] LLOYD’S LIST. Stowaways held as UK special forces end tanker ‘security incident’. Disponível em: <https://lloydslist.maritimeintelligence.informa.com/LL1134388/Stowaways-held-as-UK-special-forces-end-tanker-security-incident>, acesso em 27 de novembro de 2020; EJIL TALK. The Nave Andromeda and the seven stowaways. Disponível em: <https://www.ejiltalk.org/the-nave-andromeda-and-the-seven-stowaways/>, acesso em 27 de novembro de 2020.
[6] ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS. Rescue at Sea, Stowaways and Maritime Interception. Disponível em: < https://www.refworld.org/pdfid/4ee087492.pdf>, acesso em 27 de novembro de 2020.
[7] LLOYD’S LIST. Stowaways held as UK special forces end tanker ‘security incident’. Disponível em: <https://lloydslist.maritimeintelligence.informa.com/LL1134388/Stowaways-held-as-UK-special-forces-end-tanker-security-incident>, acesso em 27 de novembro de 2020.
[8] BBC. Tanker stowaways: Seven men arrested over ship’s ‘hijacking’. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/uk-england-hampshire-54687379>.
[9] ORGANIZAÇÃO MARÍTIMA INTERNACIONAL. Formalities connected with the ar rival, stay and departure of persons: stowaways: International Group of P&I Clubs data on stowaway cases. Disponível em: <https://wwwcdn.imo.org/localresources/en/OurWork/Facilitation/Documents/FAL%2043-13.pdf> , acesso em 27 de novembro de 2020.
[10] ORGANIZAÇÃO MARÍTIMA INTERNACIONAL. Revised guidelines on the prevention of access by stowaways and the allocation of responsibilities to seek the successful resolution of stowaway cases. Disponível em: <https://wwwcdn.imo.org/localresources/en/OurWork/Facilitation/PublishingImages/Pages/Default/RESOLUTION%20FAL.13(42).pdf> , acesso em 27 de novembro de 2020; EJIL TALK. The Nave Andromeda and the seven stowaways. Disponível em: <https://www.ejiltalk.org/the-nave-andromeda-and-the-seven-stowaways/>, acesso em 27 de novembro de 2020.
[11] EJIL TALK. The Nave Andromeda and the seven stowaways. Disponível em: <https://www.ejiltalk.org/the-nave-andromeda-and-the-seven-stowaways/>, acesso em 27 de novembro de 2020.
[12] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations Convention on the Law of the Sea of 1982. Disponível em: <https://www.un.org/depts/los/convention_agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf>, acesso em 27 de novembro de 2020.
[13]MONDAQ. Navigating The Choppy Waters Of Maritime Security: The Nave Andromeda. Disponível em: <https://www.mondaq.com/nigeria/marine-shipping/1004102/navigating-the-choppy-waters-of-maritime-security-the-nave-andromeda>, acesso em 27 de novembro de 2020.
[14] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations Convention on the Law of the Sea of 1982. Disponível em: <https://www.un.org/depts/los/convention_agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf>, acesso em 27 de novembro de 2020, artigo 107 e subsequentes; ORGANIZAÇÃO MARÍTIMA INTERNACIONAL. Maritime Security and Piracy. Disponível em: <https://www.imo.org/en/OurWork/Security/Pages/MaritimeSecurity.aspx> , acesso em 27 de novembro de 2020.
[15] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. International Covenant on Civil and Political Rights. Disponível em: < https://www.ohchr.org/en/professionalinterest/pages/ccpr.aspx>, acesso em 27 de novembro de 2020.
[16] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. International Covenant on Civil and Political Rights. Disponível em: <https://treaties.un.org/pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-4&chapter=4&clang=_en>, acesso em 27 de novembro de 2020.
[17] ORGANIZAÇÃO MARÍTIMA INTERNACIONAL. Convention on the Facilitation of International Maritime Traffic (FAL). Disponível em: < https://euroflag.lu/wp-content/uploads/2019/03/Convention-on-Facilitation-of-International-Maritime-Traffic-1965-as-amended-FAL-Convention-2.7.4-Recommended-Practice.pdf>.
[18] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. 1951 Convention Relating to the Status of Refugees. Disponível em: < https://www.unhcr.org/3b66c2aa10>, acesso em 27 de novembro de 2020.