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01 outubro 2020

O VÍNCULO SUBSTANCIAL E A PROLIFERAÇÃO DE OPEN REGISTRIES, BREVE ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR

Por Julia Cirne Lima Weston
Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Mestre (LL.M) em Direito Internacional pela University College London.


Não é incomum que ao se haver um desastre ambiental marinho relacionado a navios petroleiros, haja menção dos chamados open registries, ou registros abertos. Foi o caso do M/V Wakashio, último grande desastre ambiental, que naufragou na costa das ilhas Maurício, registrado no Panamá. O mesmo ocorreu em naufrágios famosos na costa europeia, o Torey Canyon e o Erika, ambos registrados sob bandeiras de mesmo caráter.

Um dos princípios que permitem a liberdade de navegação é o do registro de navios, para que obtenham uma bandeira sob a qual navegarão. Estes Estados de Bandeira terão o dever de assegurar que um navio cumpra com os requerimentos necessários de segurança e navegabilidade.[1]

Na configuração mundial atual, o que ocorre, de acordo com o último relatório da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), é que mais de 40% da frota marinha global ainda é registrada em países que são conhecidamente registros abertos.[2]  O Panamá é o primeiro país em termos de navios registrados, seguido imediatamente pela Libéria e pelas Ilhas Marshall.[3]

Os chamados open registries, ou ainda, por alguns, de “bandeiras de conveniência”, são países que exigem menos condições para que navios sejam registrados e obtenham sua bandeira.[4] A estes, normalmente se aplicam menos regulamentações trabalhistas e menores taxas para registro.[5] Estes benefícios claramente refletem em um grande número de navios registrados pela indústria marítima.  

É fato conhecido que a jurisdição sobre navios, seja de forma concorrente nas zonas marítimas de outros países, ou exclusiva em alto mar, cabe ao Estado de Bandeira.[6] Cabe a eles não realizar vistorias em relação à condição das embarcações a fim de evitar acidentes ambientais, mas também a investigar os acontecimentos que prejudicam outros Estados. Também cabe a estes Estados aplicar as sanções relevantes caso ocorram violações.    

Um dos grandes problemas apresentados pelos open registries, para a aplicação de sanções por parte dos Estados de Bandeira é o fato de que o vínculo substancial entre o navio e seus donos, na prática, é muito difícil de averiguar. Isto ocorre, pois estes mesmos países possibilitam a fácil incorporação de empresas em seus territórios, oriundas de diversas regiões e formadas por indivíduos não necessariamente lá residentes.[7] Isto torna a responsabilização prática, por parte do Estado de Bandeira, ainda mais difícil.[8] 

A mera existência de open registries é um produto da regulamentação aberta apresentada pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982. Enquanto a Convenção exige que haja um vínculo substancial entre o navio e seu Estado de registro, o conceito é simplesmente deixado sem nenhuma explicação. Portanto, enquanto não há realmente uma restrição neste sentido, há uma permissão tácita da existência de open registries.  

Neste sentido, a jurisprudência do Tribunal Internacional do Direito do Mar (TIDM) teve algumas ocasiões para esclarecer a questão do vínculo genuíno, presente no artigo 92. As mais notáveis deram-se nos casos M/V Saiga 2 e no M/VVirginia G.

No primeiro caso, entre São Vicente e as Granadinas (Estado de bandeira) e a Guiné, o TIDM, ao ser questionado sobre a existência de um vínculo substancial, disse que não há um conceito fornecido pela Convenção. Conteve-se apenas em determinar que a UNCLOS, ao estabelecer esta necessidade, focou em assegurar uma implementação mais efetiva dos deveres do Estado de bandeira, não para que Estados possam questionar o registro de navios por outros países.[9] O TIDM afirmou, também, que enquanto a Guiné afirmou não haver um vínculo substancial no caso, não proveu provas suficientes para averiguar este fato.

No caso M/V Virginia G, entre Panamá e Guiné-Bissau, tivemos a segunda oportunidade do TIDM de abordar esta temática. Neste caso, a análise do tribunal foi no sentido de que o vínculo substancial não é um pré-requisito para que haja o registro de um navio.[10] Este se configuraria ao ser exercida a jurisdição efetiva sobre o navio, de acordo com os termos do artigo 94.[11]

Esta jurisprudência foca, na realidade, na prática da indústria marítima, permitindo que haja estes open registries. De acordo com autores, porém, houve uma perda de chance por parte do TIDM de estabelecer uma jurisprudência contra as chamadas “bandeiras de conveniência”, fortalecendo assim a necessidade de real jurisdição dos Estados de bandeira sobre seus navios.[12]

Logo, o conceito de “vínculo substancial” ainda é aberto na jurisprudência do Direito do Mar, tendo sido deixado assim desde a sua concepção, na UNCLOS. Este vácuo permitiu com que os chamados open registries ou, por alguns, de “bandeiras de conveniência” se proliferassem. Enquanto não houver uma mudança na jurisprudência do TIDM, haverá uma tendência à legalidade dos open registries dentro do corpo legal do Direito do Mar.


[1] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982). United Nations Convention on the Law of the Sea. Montego Bay: United Nations, 1982. Disponível em: < http://www.un.org/depts/los/convention_agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf>.

[2] Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. Review of Maritime Transport 2019.  Disponível em: <https://unctad.org/en/PublicationsLibrary/rmt2019_en.pdf>.

[3] ibid.

[4] BOCZEK, Boleslaw Adam. Flags of Convenience: an international legal study. Cambridge: Harvard University Press, 1962.

[5] ibid.

[6] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982). United Nations Convention on the Law of the Sea. Montego Bay: United Nations, 1982. Disponível em: < http://www.un.org/depts/los/convention_agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf>.

[7] BEHNAM, Awni; FAUST, Peter. Twilight of Flag State Control. Ocean Yearbook, Leiden, vol. 17, n.1, p. 167-192, jan. 2003.

[8] ibid.

[9] TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR. The M/V “SAIGA” (No. 2) Case (Saint Vincent and the Grenadines v. Guinea). Disponível em: <https://www.itlos.org/cases/list-of-cases/case-no-2/>.

[10] TRIBUNAL INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR. The M/V “Virginia G” Case (Panama/Guinea-Bissau). Disponível em: <https://www.itlos.org/cases/list-of-cases/case-no-19/>.

[11] ibid.

[12] SCOVAZZI, Tulio. ITLOS and Jurisdiction Over Ships. In: RINGBOM, Henrik. Post-UNCLOS Developments in the Law of the Sea. Leiden: Brill Nijhoff, 2015, p. 382-404.

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