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30 outubro 2020

A jurisdição material de tribunais do sistema de solução compulsória de controvérsias da CONVEMAR: as contribuições da arbitragem do incidente “Enrica Lexie”

      Na última década, algumas das grandes arbitragens de direito do mar enfrentaram um mesmo desafio: a análise do mérito –– limitada à interpretação ou aplicação da CONVEMAR –– ficou (ou poderia ter ficado) prejudicada em razão de uma questão estranha à Convenção precisar ser previamente examinada. Fala-se, sobretudo, das arbitragens do Mar do Sul da China (i), da Área Marinha Protegida de Chagos (ii) e dos Direitos do Estado Costeiro no Mar Negro, Mar de Azov e Estreito de Kerch (iii).[1]

      Estes casos são oriundos da seção 2, Parte XV, CONVEMAR. Mais especificamente, o Artigo 287 prevê que um Estado pode escolher uma ou mais opções de corte ou tribunal internacional para a solução de controvérsias relativas à interpretação ou aplicação da Convenção (. Caso não escolha nenhuma –– ou nenhuma que a outra parte da disputa também tenha porventura escolhido ––, os parágrafos terceiro e quinto do dispositivo estipulam que um tribunal arbitral terá jurisdição sobre a controvérsia.

      Para que várias questões de interpretação ou aplicação da CONVEMAR sejam decididas, questões prejudiciais estranhas à Convenção devem ser previamente examinadas. Os três casos mencionados no primeiro parágrafo implicavam questões de soberania. Daí terem os tribunais –– nos dois últimos –– decidido que não tinham jurisdição e –– no primeiro –– que, mudados os fatos sensivelmente, também não teria jurisdição. [2]

      A arbitragem do incidente Enrica Lexie trouxe novas contribuições para esta confusa discussão. Os fatos tratam, sucintamente, de um petroleiro italiano (o Enrica Lexie), em que oficiais da marinha italiana haviam embarcado em Galle, no Sri Lanka, como vessel military detachment, [3] visando a manter a segurança da embarcação em uma zona de pirataria –– para chegar ao Porto de Saíde, no Egito, a embarcação passaria pelas águas que banham o chifre da África. [4] No entanto, quando estava a cerca de 20 milhas náuticas de Allapuzha, Índia, identificou a aproximação de um pequeno barco (Saint Antony) que se aproximava rapidamente e não respondia aos sons, sinais e tiros de aviso, dando a impressão de tratar-se de uma embarcação pirata. Estando a 30 metros, depois de três rajadas de tiro, muda o curso de sua navegação.[5]

      Mais tarde, o Enrica Lexie recebe mensagens para ir ao porto de Cochim, Índia, para a coleta de provas de um caso de pirataria reportado na região. [6] Chegando lá, o petroleiro e sua tripulação são investigados pela morte de dois tripulantes do Saint Antony. [7] A embarcação foi apreendida e solta depois de menos de três meses. [8] Os responsáveis pelos disparos, da marinha italiana, no entanto, foram presos preventivamente e, depois, colocados em liberdade provisória, mediante fiança e outras medidas cautelares. [9]

      Diante destes fatos. a Itália notificou a Índia do início de uma arbitragem, de acordo com o Anexo VII da CONVEMAR. Nas palavras do memorial italiano, “trata-se de uma disputa sobre quem tem jurisdição sobre o M/V Enrica Lexie, um petroleiro de bandeira italiana, e sobre dois membros da marinha italiana estacionados a bordo do Enrica Lexie”. [10] A engenharia jurídica se concentrou em como encaixar a suposta imunidade dos oficiais italianos no âmbito material da jurisdição do tribunal.

      A decisão foi feita e comunicada às partes em maio de 2020, sua parte dispositiva divulgada ao público em julho e seu inteiro teor está disponível no site da Corte Permanente de Arbitragem desde agosto. [11] A partir da fundamentação da decisão e das opiniões dissidentes, teceremos alguns comentários.

      Primeiro, a Itália tentou trazer a questão da imunidade sob a jurisdição do tribunal por meio de normas de reenvio, que fazem referência a “outras regras de direito internacional não incompatíveis com a Convenção”. [12] Os dispositivos foram os Artigos 2 (3), 56(2) e 58 (2). [13] Conciso, o Tribunal apenas determinou que estes dispositivos não eram pertinentes, porque a Índia exerceu jurisdição em águas interiores, sobre as quais a Convenção é quase silente. [14]

      O Tribunal também entendeu que a Índia não havia violado os Artigos 87 e 97, [15] mas que, pelo Artigo 92, ambos os Estados tinham, a priori, jurisdição concorrente (como país da bandeira), inclusive criminal, sobre os fatos –– a ação aconteceu na embarcação italiana, mas os seus resultados (mortes e danos) se deram na embarcação indiana. [16] Porém, entendeu que, para decidir se a Índia tinha ou não jurisdição, havia uma questão incidental a ser resolvida, qual seja, a imunidade dos oficiais italianos. [17] Perceba-se que esta espécie de imunidade não é contemplada pela CONVEMAR. Com efeito, as referências à imunidade de navios de Estado presentes na Convenção não abarcam a de oficiais. Assim, tratar-se-ia de matéria além da “interpretação ou aplicação da Convenção”.

      Para decidir que tinha jurisdição sobre a matéria, houve grande embasamento na ratio decidendi da Arbitragem da AMP de Chagos, entre Ilhas Maurício e Reino Unido. Em breve resumo, aquele pediu ao Tribunal que determinasse que a criação da AMP na região do Arquipélago de Chagos pelo Reino Unido é ilícita, já que este não é o Estado costeiro que teria direito aos respectivos espaços marítimos. [18]

      No plano teórico, a razão de decidir da Decisão de Chagos dá pouca margem para críticas. Examinando a posição de ambas as partes, identifica-se objetivamente a disputa, isola-se a verdadeira questão do caso e se identifica o objeto do pedido, que deve estar sob a jurisdição do Tribunal.[19] Ademais, a jurisdição material do tribunal pode ser estendida a conclusões de fato ou determinações auxiliares/subsidiárias de direito, na medida do necessário, para resolver a disputa com que se deparou –– a “verdadeira questão” desta disputa deve dizer respeito à interpretação ou aplicação da Convenção. Por fim, quando a “verdadeira questão” ou o “objeto do pedido” não se relaciona com a interpretação ou aplicação da Convenção, havendo apenas uma conexão incidental de um aspecto da disputa com matéria regulada pela CONVEMAR, o Tribunal não tem jurisdição. [20]

      Com esta premissa maior –– o teste do parágrafo anterior ––, no Caso Chagos, o Tribunal entendeu que o verdadeiro problema não estava simplesmente em identificar o Estado costeiro, mas em saber quem tinha soberania sobre o Arquipélago de Chagos e esta não era uma mera questão auxiliar, mas “the real issue”. Para a maioria –– três de um painel formado por cinco árbitros ––, sob nenhuma hipótese questões de soberania envolvem a interpretação ou aplicação da Convenção e, assim, decidiu que não tinha jurisdição. [21] A minoria, a partir de uma interpretação sistemática, entendeu que a disputa dizia respeito ao Artigo 56, sobre os poderes do Estado costeiro na Zona Econômica Exclusiva, e que o Tribunal poderia decidir incidentalmente sobre soberania neste sentido. [22]

      Diferentemente, no caso Enrica Lexie, o Tribunal foi categórico: “enquanto a Convenção não prevê uma base para um pedido apenas sobre imunidade sob o direito internacional geral, a competência do Tribunal Arbitral se estende à determinação da questão da imunidade dos oficiais da marinha que necessariamente aparece como uma questão incidental na aplicação da Convenção” –– “determinação auxiliar/subsidiária de direito”, na linguagem do Caso Chagos. [23] Usou a mesma premissa maior, mas chegou a uma conclusão diferente; aceitou a jurisdição. O cerne da discussão, inclusive na opinião dissidente conjunta de dois –– Robinson (jamaicano) e  Pemmaraju Rao (indiano) ––  dos cinco árbitros, está na caracterização da disputa e no significado de “questão incidental”, tendo por referência a “verdadeiro questão” e o “objeto do pedido”.

      A maioria –– Francioni (italiano), Pai (sul-coreano) e Golitsyn (russo) –– entendeu que a disputa dizia respeito a qual parte poderia exercer jurisdição sobre o incidente envolvendo o Enrica Lexie e o St. Antony (verdadeira questão). Ato contínuo, questionou-se se esta questão poderia ser satisfatoriamente respondida sem abordar a questão da imunidade dos oficiais italianos. Aqui, o Tribunal cita e concorda com fala do consultor da Itália Michael Wood: “nas circunstâncias deste caso, não faria sentido o Tribunal determinar que um Estado tem jurisdição sob a Convenção sem, ao mesmo tempo, decidir se tal exercício de jurisdição seria lícito segundo o Direito Internacional. Isto necessariamente requer uma decisão sobre imunidade”.  Neste sentido, a questão da imunidade dos oficiais pertenceria àquelas “preliminares ou incidentais à aplicação” da Convenção.[24]

      Os árbitros que compuseram a minoria criticaram duramente esta conclusão. Primeiro, pontuou-se que a Itália organiza seus pedidos de maneira a distinguir claramente o exercício da jurisdição sobre o incidente daquele sobre os oficiais –– o primeiro ponto tem por base, sobretudo, os Artigos 87 e 97 e o segundo, os Artigos 2 (3), 56 (2) e 58 (2), como normas de reenvio. Portanto, o pedido relativo à imunidade dos oficiais não foi incidental ao primeiro. [25] A posição da maioria foi que, mesmo para resolver apenas o primeiro, teria que analisar a imunidade (cf. parágrafo anterior).

      A minoria, seguindo entendimento esposado em opinião separada em caso decidido pela  Corte Internacional de Justiça, entendeu que tratar de regras sobre jurisdição não implica ipso jure em tratar também sobre regras sobre imunidade de jurisdição. [26] Menciona também precedente entre a Arbitragem dos Direitos do Estado costeiro (Ucrânia v Rússia), em que o Tribunal se recusou a julgar a questão, porque não teria como decidir a respeito dos direitos do Estado costeiro, sem antes decidir sobre quem era o Estado costeiro (discussão sobre soberania). [27] Por fim, aborda também a relação entre o direito aplicável (Artigo 293) e a jurisdição material (Artigo 288) e como aquele poderia expandir indevidamente este. [28]

      Ao fim e ao cabo, no que atine ao caso Enrica Lexie e para os árbitros dissidentes, surgem duas alternativas: recusar toda a jurisdição –– pois não teria como decidir o caso sem considerar as regras sobre imunidade de oficiais ––[29] ou aceitar apenas a parte que efetivamente diz respeito à interpretação ou aplicação da Convenção, não emitindo julgamento sobre a violação de regras sobre imunidade. [30]

      A decisão do Tribunal Arbitral sobre o incidente Enrica Lexie recorreu a importantes e influentes precedentes. No tópico respeitante à jurisdição sobre esta matéria, os principais foram o caso sobre certos interesses alemães na alta Silésia polonesa (Corte Permanente de Justiça Internacional) e a Arbitragem da AMP de Chagos. Por outro lado, é forçoso reconhecer que as análises dos precedentes feitas nas opiniões dissidentes são pertinentes e mais persuasivas

      Não obstante, isto não quer dizer que a decisão da maioria foi indevida ou equivocada –– até porque precedente judicial não é fonte primária do direito internacional. Evidentemente, trouxe riscos ao expor um novo entendimento sobre o que significaria uma questão incidental e isto pode expandir a jurisdição material do Tribunal além do desejado. No entanto, os fatos refletiram uma nova realidade não contemplada há quatro décadas, quando da Terceira Conferência: a presença de oficiais em navios privados não usados para fins governamentais, a fim de proteger a embarcação contra ataques piratas. Concretamente, por um lado, trouxe os riscos supramencionados.

      D’outro, promoveu necessária decisão sobre a imunidade de oficiais em navios privados e salvaguardou a unidade do direito internacional, ao não considerar as jurisdições reconhecidas no direito do mar (mais precisamente na CONVEMAR) isoladamente, de modo que, também seguindo Michael Wood, seria insatisfatório, ou até mesmo um desserviço, dizer que um Estado tem jurisdição sob a Convenção, sem ao mesmo tempo decidir se tal exercício seria lícito de acordo com o direito internacional como um todo.

 

Texto escrito por Eduardo Cavalcanti de Mello Filho, estagiário do IBDMAR, sob a supervisão de Felipe Kern Moreira, Diretor do Instituto.


[1] PERMANENT COURT OF ARBITRATION (PCA). Chagos Marine Protected Area Arbitration (Mauritius v. United Kingdom), Award of 18 March 2015. South China Sea Arbitration (Philippines v. China), Award on Jurisdiction and Admissibility of 29 October 2015. Dispute Concerning Coastal State Rights in the Black Sea, Sea of Azov and Kerch Strait (Ukraine v Russia), Award concerning the preliminary objections of the Russian Federation of 21 February 2020.

[2] PCA. Dispute Concerning Coastal State Rights in the Black Sea, Sea of Azov and Kerch Strait (Ukraine v Russia), Award concerning the preliminary objections of the Russian Federation of 21 February 2020, para 492. Chagos Marine Protected Area Arbitration (Mauritius v. United Kingdom), Award of 18 March 2015, para 547. South China Sea Arbitration (Philippines v. China), Award on Jurisdiction and Admissibility of 29 October 2015, para 711.

[3] Também comumente chamados de Vessel Protection Detachments (VPDs), trata-se de pessoal militar uniformizado a bordo de uma embarcação com a explícita aprovação do país da bandeira. Normalmente, são da nacionalidade da embarcação (do país da bandeira), mas há arranjos como memoranda de entendimento ou acordos de estatuto de forças (State of Forces Agreements) por meio dos quais pessoais militares de um país embarcam em navios de outra nacionalidade.

[4] PCA. Dispute concerning the Enrica Lexie Incident (Italy v. India), Award of 21 May 2020, para 81.

[5] Ibid., paras 87-101.

[6] Ibid., para 145.

[7] Ibid., para 155.

[8] Ibid., para 172.

[9] Ibid., para 177.

[10] Ibid., para 3.

[11] Disponível em: < https://pca-cpa.org/en/cases/117/> . Acesso em 7 out. 2020.

[12] O termo usado no memorial italiano e reproduzido na decisão é renvoi, palavra francesa cuja tradução literal é reenvio. Uma norma de reenvio, neste contexto, faz referência a outra norma ou esfera normativa, importando-a. A norma importada é então interpretada e aplicada como se fosse uma disposição da Convenção. No Enrica Lexie, “outras regras de direito internacional não incompatíveis” com a Convenção são importadas.

[13] O Artigo 2 (3) submete a soberania exercida sobre o mar territorial à Convenção e a outras regras de direito internacional. O Artigo 58 (2) determina que outras os Artigos 88 a 115 e regras de direito internacional são aplica1veis à Zona Econômica Exclusiva (ZEE) contanto que não contrariem a Parte V, sobre ZEE.

[14] Ibid., para 798.

[15] Estes foram os principais dispositivos no argumento italiano para questionar o exercício de jurisdição sobre a Enrica Lexie. O Artigo 87 traz, dentre outras, a liberdade de navegação, aplicável à ZEE por força do Artigo 58 (1). O Tribunal entendeu que dispositivo não foi violado, porque as condutas indianas não limitaram efetivamente a liberdade do Enrica Lexie, sem coercitividade. Ibid., paras 504-5. O Artigo 97 trata da jurisdição penal em incidentes da navegação (exclusiva do Estado da bandeira ou da nacionalidade), mas o Tribunal não considerou aplicável porque os fatos não descrevem um incidente da navegação. Ibid., para 656.

[16] Ibid., para 839.

[17] Ibid., para 809.

[18] PCA. Chagos Marine Protected Area Arbitration (Mauritius v. United Kingdom), Award of 18 March 2015, para 158.

[19] Ibid., para 208.

[20] Ibid., para 220.

[21] Ibid., para 221.

[22] PCA. Chagos Marine Protected Area Arbitration (Mauritius v. United Kingdom), Dissenting and Concurring Opinion of Arbitrators Kateka and Wolfrum, para 45.

[23] Tradução livre nossa: “while the Convention may not provide a basis for entertaining an independent immunity claim under general international law, the Arbitral Tribunal’s competence extends to the determination of the issue of immunity of the Marines that necessarily arises as an incidental question in the application of the Convention.” PCA. Italy v India, Award, para 809.

[24] Tradução livre nossa: “in the circumstances of this case, it would make no sense whatsoever for the Tribunal to determine that a state has jurisdiction under the Convention without, at the same time, deciding whether the exercise of such jurisdiction would be lawful under international law. This necessarily requires a decision on immunity.” Ibid., paras 806-808.

[25] PCA Dispute concerning the Enrica Lexie Incident (Italy v. India), Concurring and dissenting opinion of Arbitrator Pemmaraju, para 39

[26] INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE. Arrest Warrant of 11 April 2000 (Democratic Republic of the Congo v. Belgium), Judgment, Joint Separate Opinion of Judges Higgins, Kooijmans and Buergenthal, 2002, pp 63-64. PCA. Dispute concerning the Enrica Lexie Incident (Italy v. India), Concurring and dissenting opinion of Arbitrator Pemmaraju, para 55.

[27] PCA. Dispute Concerning Coastal State Rights in the Black Sea, Sea of Azov, and Kerch Strait (Ukraine v. Russia), Award concerning the preliminary objections of the Russian Federation of 21 February 2020, para. 196. Dispute concerning the Enrica Lexie Incident (Italy v. India), Concurring and dissenting opinion of Arbitrator Pemmaraju, para 54 Dispute concerning the Enrica Lexie Incident (Italy v. India), Dissenting Opinion of Arbitrator Robinson, para 49.

[28] PCA. Dispute concerning the Enrica Lexie Incident (Italy v. India), Concurring and dissenting opinion of Arbitrator Pemmaraju, paras 46 e 57.

[29] PCA. Dispute concerning the Enrica Lexie Incident (Italy v. India), Dissenting Opinion of Arbitrator Robinson, para 81.

[30] PCA. Dispute concerning the Enrica Lexie Incident (Italy v. India), Concurring and dissenting opinion of Arbitrator Pemmaraju, p 34.

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