Um mar sem limites
Por Bruno Costelini
Oceanógrafo, doutorando em Direito
Mais do que uma história natural, que só conhecemos indiretamente através de registros paleontológicos, esqueletos fósseis ou traçadores químicos presos em camadas de sedimentos, a história dos oceanos que verdadeiramente nos interessa, nos toca e fascina é aquela que se centra nas aventuras humanas, nas grandes movimentações de embarcações, de grupos humanos, de comércio e de vidas, que por séculos, milênios até, têm singrado mares desconhecidos e rotas estabelecidas, expandindo o domínio da ocupação humana da Terra.
É a essa tarefa que se dedica David Abulafia, em seu recente tratado intitulado “The Boundless Sea: a Human History of the Oceans” [em tradução livre, O Mar sem Limites: uma Historia Humana dos Oceanos], um calhamaço de 1.050 páginas, publicado no ano passado pela editora Allen Lane, infelizmente ainda sem tradução para o português.
Professor da Universidade de Cambridge, Abulafia dedicou sua carreira acadêmica de mais de cinco décadas a estudar a rica tradição marítima dos povos que circundam o Mar Mediterrâneo, o que resultou em seu livro anterior, O Grande Mar: uma História Humana do Mediterrâneo (Objetiva, 2014). O volume que analisamos aqui se coloca, portanto, como uma extensão da bibliografia anterior, uma tentativa de expandir o método que havia aplicado aos limites do mar continental agora às três grandes massas oceânicas que cobrem dois terços da superfície do planeta.
Para tanto, ele não mediu esforços e deu várias voltas ao mundo, consultando bibliotecas, arquivos, acervos históricos e museus marítimos em todos os continentes (uma lista dos quais é fornecida ao final e pode servir como uma perfeita bucket list de lugares a se visitar por toda uma vida), desfrutando do acesso proporcionado pelas suas qualificações. O resultado é o mais amplo panorama já escrito da ação humana nos oceanos através dos tempos.
Não se trata, contudo, de uma exposição protocolar ou pretensamente neutra de fatos históricos alinhados cronologicamente e com uma visão eurocêntrica focada nas grandes descobertas de Vasco da Gama e Cristóvão Colombo e da colonização que se seguiu, como muitas vezes é o caso. Abulafia faz questão de notar que esses eventos foram sim particularmente importantes, mas que só podem ser interpretados à luz de todos os antecedentes e paralelos que ocorreram em outros pontos do globo.
Assim, as primeiras três partes do livro (ocupando sua primeira metade) são dedicadas ao estudo individual da ocupação dos Oceanos Pacífico, Índico e Atlântico até o ano 1.500, período em que as conexões e movimentos proporcionados pelas águas permitia essa individualização. Assim, tanta atenção é dada às civilizações anteriores a Colombo e Da Gama quanto às posteriores.
Um ponto central da narrativa é evidenciar o quanto o domínio da navegação de longo curso foi algo alcançado há milênios e em vários momentos distintos, em ciclos de desenvolvimento, auge e eventual abandono, respondendo a pressões sociais e evolutivas. De maneira que o que determinou que os “primitivos” povos do Pacífico sul, por exemplo, tenham conquistado regiões tão distantes de sua origem como o Havaí ou a Ilha de Páscoa, mas não tenham aportado na América (ao que sabemos), não foram as limitações tecnológicas apenas, mas as circunstâncias, os modos de vida e a necessidade, enfim de colonizar mais adiante ou não.
O mesmo ocorreria mais tarde na China de Zheng-He, quando frotas de embarcações capazes de chegar à costa africana foram lançadas em seguidas expedições reais, crescentemente ambiciosas e sofisticadas. Uma troca na cúpula do Poder Imperial, contudo, foi o bastante para interromper a expansão e em algumas centenas de anos os portos do país estavam reduzidos a uma serie de protetorados britânicos e postos de comércio de nações europeias.
No Atlântico, igualmente, as condições para a travessia estavam postas há pelo menos quinhentos anos antes de Colombo, quando vikings colonizaram a Groenlândia e alcançaram a costa canadense, estabelecendo-se brevemente no que hoje é conhecido como o sítio arqueológico de L`Anse Aux Meadows. Ali também o que impediu a conquista definitiva dos mares não foi a capacidade técnica, mas as circunstâncias da época.
Na segunda metade do livro Abulafia se debruça finalmente sobre o mundo globalizado fruto das grandes navegações europeias, momento a partir do qual se pode falar de um domínio sustentado e unificador dos mares, determinando o tratamento único. Os efeitos dessa unificação, da transmutação de algumas espécies até a extinção total de outras, dos conflitos culturais e políticos até a integração de povos e evolução das línguas, tudo é apresentado como resultado direto da amplificação das conexões permitidas pelos oceanos.
E embora o autor afirme que não se trata de um livro sobre a tragédia ambiental e as misérias causadas pela ocupação humana dos oceanos, de petróleo a plásticos, sobrepesca e acidificação, a nota final é bastante negativa. Abulafia vê os oceanos tomados cada vez mais por cargueiros e máquinas, portos decadente e esvaziados de pessoas, longe do ambiente rico de trocas humanas que sempre significou ao longo dos quatro milênios anteriores. O oceano finalmente contido, enfim, no espaço de um contêiner.