Embarcações chinesas, pesca ilegal e Galápagos: como o Equador tem se comportado enquanto ator internacional?
Há quatro anos, frotas de navios pesqueiros às centenas vêm ocupando a região de águas internacionais entre a ZEE Equatoriana continental e a arquipelágica de Galápagos, aproveitando-se da migração de várias espécies marinhas protegidas para capturá-las de forma predatória. No dia 16 de julho de 2020, 260 embarcações, compostos na maioria de navios chineses, e em menor número de outros países, como Panamá e Libéria, foram avistadas pela Armada Nacional equatoriana.
Quando, em 2017, constatou-se que um navio chinês carregava 300 toneladas de espécies de tubarão protegidas, a problemática se tornou alvo da mídia internacional. Espécies como as que estavam sendo caçadas tinham um papel fundamental no equilíbrio da população de outras espécies, como foi dito por Walter Bustos, ex-diretor do Parque Nacional de Galápagos, e que participara da abordagem ao barco chinês. Outras espécies, tanto de lulas como de arraias, também estão tendo suas populações comprometidas.
A problemática se evidencia quando boa parte destas embarcações desliga o sistema de monitoramento – o Sistema de Identificação Automático (AIS, no inglês) –, disposto pela Organização Marítima Internacional (OMI), ou burlam o sistema, duplicando o mesmo sinal para duas embarcações, o que permite que um navio continue em mar aberto com o sinal ligado, enquanto outro, com o AIS desligado, adentra uma ZEE nacional para realizar a pesca ilegal, não reportada ou não regulada (pesca IUU, do inglês) . A pesca de espécies protegidas em períodos de migração pode representar um sério problema ao equilíbrio ambiental marinho, principalmente quando relacionado à fauna de Galápagos, um ecossistema delicado com muitas espécies endêmicas e Patrimônio Natural da Humanidade declarado pela UNESCO. Além da pesca ilegal, a quantidade de lixo descartado nos oceanos por essas frotas pode ser comprometedora para espécies marinhas.
A volta destas frotas de navios pesqueiros em julho deste ano levou o governo equatoriano a estabelecer quatro eixos de ação para tratar do problema, como foi informado pelo jornal Primicias: (i) vias bilaterais diretamente com a China; (ii) vias multilaterais, principalmente com a Organização Regional de Ordenação Pesqueira do Pacífico Sul (OROP-PS) e com a Comissão Interamericana do Atum Tropical (CIAT); (iii) cooperação com as autoridades do Peru e da Colômbia; e (iv) a Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (CONVEMAR).
O estabelecimento de múltiplos canais de ação e negociação é uma estratégia política que deve ser brevemente analisada. Dentro das Relações Internacionais, Organizações Internacionais e Fóruns multilaterais, ora específicos para um tema ora gerais, são utilizados pelos países para reverberar demandas nacionais, com a possibilidade de transformar a problemática em internacional. Segundo autores de correntes internacionalistas, isto é, que acreditam no papel de instituições como forças no sistema internacional, como Joseph Nye e Robert Keohane, a existência de diversos eixos de ação possibilita a ausência de hierarquia permanente para os temas discutidos internacionalmente. Isso abre espaço para que diversos temas sejam definidos ao longo do tempo.As organizações funcionam como câmaras que reverberam os temas entre os países.
Assim, a definição de diversos eixos na política equatoriana auxilia na divulgação do problema, o que pode proporcionar a internacionalização do problema da pesca IUU e de espécies em proteção, principalmente por países que enfrentam o mesmo problema, como será posteriormente discutido.
O quarto eixo, relativo ao direito do mar dentro da CONVEMAR, já foi explorado no site do Instituto Brasileiro de Direito do Mar, e pode ser acessível por meio deste link. Esta matéria será focada nos três primeiros eixos definidos pelo Ministério de Relações Exteriores e Mobilidade Humana (MREMH) do Equador, isto é, no comportamento do país enquanto um ator na negociação bilateral e multilateral.
No que concerne ao primeiro tópico, é importante frisar que, desde o início do século XXI, as relações China-Equador tem se aprofundado, com os discursos dos dois países se voltando à Cooperação Sul-Sul, isto é, entre países em desenvolvimento dentro do Sul Global, definido a partir de critérios socioeconômicos. No entanto, a partir de novembro de 2016 as relações entre os dois países foram elevadas ao status de Aliança Estratégica Integral. Entre estados, a formação de alianças estratégicas significa o alinhamento dos seus objetivos, fomentando parcerias em diversos setores, que, no caso em questão, significou o auxílio chinês no desenvolvimento da segurança energética equatoriana, e o Equador como um cliente-chave de bancos chineses, possuindo com estes, em 2020, uma dívida que supera cinco bilhões de dólares.
Ao longo dos últimos quatro anos, diversas reuniões foram realizadas entre os dois países para a discussão do desenvolvimento conjunto, mas nenhuma chegou a tratar do problema da pesca ilegal que atingia águas próximas às equatorianas. A política externa dos dois chanceleres anteriores a Luis Gallegos, que assumiu em julho deste ano, diante do problema dos navios de pesca irregulares se resumiu a uma carta de protestos para a China, ações em Organizações Internacionais relacionadas à Pesca, como realizadas pela ex-Chanceler María Fernanda Espinosa, e a convocação do embaixador chinês para a discussão do tema em 2019, pelo até então Chanceler José Valencia.
Em contraste, Gallegos estabeleceu um curso de ação que buscou a negociação com a China, e não mais apenas atitudes de protesto. Desde o dia 16 de julho, quando a Armada Nacional notificou o governo da presença das embarcações, a nova abordagem da chancelaria equatoriana se fez notar. Já no dia 23 de julho entrou em contato com o governo chinês, tanto com seu embaixador em Quito como por meio do seu embaixador nacional em Beijing, informando ao país oriental que o Equador faria de tudo para proteger sua ZEE no Oceano Pacífico. Neste período, o governo chinês indicou que nenhum barco com a bandeira chinesa entraria em ZEE equatoriana, reiterando os limites territoriais das zonas continentais e arquipelágicas.
No começo de agosto, mais especificamente no dia 5, a China aceitou a negociação direta com o Equador acerca da frota pesqueira ao leste de Galápagos. A reunião trouxe vários pontos de acordo entre os dois países. A China reconheceu as preocupações equatorianas e a importância de Galápagos enquanto reserva natural e patrimônio cultural da humanidade. Apontou que todos os barcos pesqueiros chineses estariam em moratória de pesca ao oeste da zona de proteção durante os meses de setembro a novembro deste ano. Aceitou que o Equador supervisionasse os barcos pesqueiros de bandeira chinesa em alto mar, e em caso de indício de pesca ilegal, pediu que o país reportasse às autoridades chinesas.
O país asiático também informou a adoção de uma “política de tolerância zero” a todas as embarcações e empresas nacionais que estejam praticando pesca IUU e se mostrou disponível para a perseguição de soluções permanentes por meio da cooperação bilateral e multilateral. Esta última deve ocorrer através da OROP-PS, da qual ambos os países são membros.
As negociações com a China mostram um avanço diante da questão através da política encabeçada por Gallegos, e as negociações são um sinal disso. Nunca antes a China tinha negociado ou se permitido regular sobre as suas frotas de pesca, como comentaram assessores do governo. No entanto, algumas das proposições chinesas devem ser mais bem observadas.
O fato do Equador poder supervisionar os navios chineses é um importante progresso, mas não resolve o problema envolvendo os navios de outros países que adentram a mesma frota. Ao mesmo tempo, segundo estudo do thinktank ODI, alguns navios que pescam ilegalmente, apesar de possuírem bandeiras de outros países, são operados por empresas e operadores chineses, contribuindo para o mercado e a cadeia de produção chinesas.
Outra medida a ser averiguada é a moratória dos navios, que passaria a operar a partir de setembro. Enquanto isso, barcos pesqueiros equatorianos e de outros países latino-americanos já se encontram parados desde junho ou julho em moratória durante o período de reprodução de espécies em conservação. Em setembro, o aumento da temperatura do oceano com a mudança de estação é também o fim do trânsito de espécies entre as ZEEs do Equador. Ou seja, a moratória dos navios chineses se dará durante um período em que as espécies pecadas não estariam mais na atual região de concentração de embarcações, e não teria efeito prático significante.
O que é curioso nas relações entre Equador e China é que, durante as negociações sobre os navios pesqueiros, outras relações nas diversas áreas de cooperação e aliança não parecem ter se deteriorado. No mesmo dia em que negociações com a China se deram, o governo equatoriano anunciou o reagendamento de pagamentos de capital de linha de crédito, isto é, de pagamentos da dívida do país com o Banco de Desenvolvimento da China. Isso pode significar que a Aliança Estratégica Integral entre os dois países não está ameaçada pelos acontecimentos relacionados à pesca, já que outras áreas de cooperação e relacionamento não estão sendo utilizados pelo país oriental como forma de cessar as negociações.
Prosseguindo agora para os segundo e terceiro eixos de ação, relativos às ações multilaterais e as bilaterais com os países latino-americanos. A partir do final de julho, o Equador buscou estabelecer contatos com outros países latino-americanos costeiros para o Oceano Pacífico. No dia 27, Gallegos anunciou a convocação para a reunião do dia 29 com os chanceleres da Colômbia, do Peru e do Chile, países membros do Comitê Executivo da Comissão Permanente do Pacífico Sul (CPPS). A Comissão, que funciona como uma aliança entre os quatro países para consolidar suas presenças e o uso sustentável dos recursos marítimos do Pacífico Sudeste, condenou no dia 29 a pesca IUU em águas internacionais.
Na reunião também se reiterou o compromisso com as medidas de conservação e uso sustentável dos oceanos dos Organismos Regionais de Ordenamento Pesqueiro (OROPs), como a Organização Regional de Ordenação Pesqueira do Pacífico Sul (OROP-PS) e a Comissão Interamericana do Atum Tropical (CIAT), e decidiu por convocar em caráter de urgência uma assembleia geral da CPPS para melhor coordenar os esforços conjuntos dos países contra a pesca IUU nas águas internacionais próximas às suas ZEEs.
Além da CPPS, Luis Gallegos informou que tem conversado individualmente com os Chanceleres dos outros três países, assim como com o Panamá, país do qual alguns dos 260 navios arvoram a bandeira, e com a Costa Rica, com a qual trabalha com para o estabelecimento de uma nova reserva nas Ilhas Cocos, ao noroeste de Galápagos.
O contato bilateral com os países latino-americanos pode ser fundamental tanto para o apoio ao Equador nos fóruns multilaterais, como vem acontecendo, quanto para a formulação de estratégias diversas e conjuntas dentro do continente. O contato com o Peru e a Colômbia, países que não são partes da CONVEMAR (1), ainda se faz fundamental para o Equador, por serem os países vizinhos, estarem presentes em OROPs e terem sido alvo de pesca IUU nos últimos anos. Isto auxilia na projeção do problema dentro de Organismos Internacionais, já que aumenta a demanda pelo tema na agenda internacional.
O esforço por uma cooperação regional sobre a pesca IUU não é novidade. Há 3 anos, a CPPS emitiu uma nota sobre o problema de navios que praticavam a pesca IUU nas proximidades das ZEE peruana e equatoriana, solicitando que OROPs regionais procedessem com investigações sobre os navios pesqueiros e que, constatando violação do direito internacional, passassem a implementar sanções.
A assembleia extraordinária da CPPS se deu no dia 5 de agosto, no qual os países emitiram um chamado às OROPs para melhorar os sistemas de monitoramento e vigilância de atividades pesqueiras no Pacífico, buscando prever atividades de pesca IUU. A reunião também emitiu um chamado para o respeito e o cumprimento dos estados para com o direito internacional em matéria de pesca.
O chamado às OROPs deve atingir mais em cheio a OROP-PS, da qual Chile, Peru, Equador e China são partes, conjuntamente a outros 12 membros da América Latina, Europa, Ásia e Oceania. A OROP-PS contém também a Libéria e o Panamá na condição de membros não contratantes cooperantes. Em janeiro de 2020, na oitava reunião anual da Comissão da OROP-PS, que se realizou em Haia, nos Países Baixos, foi aprovado um documento para a cooperação com a CPPS relacionado a fortalecimento institucional, intercâmbio de informações, documentos e experiências e intercâmbio de dados e informações científicas.
Com o objetivo de manter sustentável a utilização dos recursos marinhos ao longo do Pacífico Sul, e com a presença de países e organizações de quatro continentes (cinco, se levar em consideração a Libéria, país africano), seria a organização ideal para levar o problema para a agenda global. Além disso, a OI permite um fórum aberto de diálogo entre o Equador, a CPPS, a China, a Libéria e o Panamá, ou seja, os países afetados e aqueles cujas bandeiras estampam – mesmo com o fator da cadeia de produção chinesa – os navios da frota de 260 navios.
O que pode ser compreendido é que, apesar das conquistas da política externa de Gallegos, ainda há muito trabalho a ser feito. As negociações do dia 5 de agosto com a China não resolvem o problema da pesca IUU por si só, e os dados recentes parecem aumentar o problema: uma patrulha da Marinha do Equador identificou que no dia 9 de agosto o número de embarcações saltou de 260 em julho para 340 embarcações. Várias delas tinham desligado seu sistema de localização, mas ainda assim foi possível, com base no histórico, identificar as embarcações. Gallegos informou que já vem negociando a expansão da moratória de pesca aos navios estrangeiros para maiores períodos de tempo.
Além disso, a pressão executada dentro de canais multilaterais, como as OROPs, devem continuar a ressoar o tema dentro da agenda internacional, como forma de pressionar maiores negociações com a China, e novos protocolos internacionais de combate à pesca ilegal.
Outrossim, projetos de estratégia nacional estão sendo continuadas pelo Equador, em alguns momentos também em contato com outros países do continente. Ainda no final de julho foi formada uma equipe de parceria público-privada para proteger o ecossistema de Galápagos, formada por especialistas como Yolanda Kalabadse, que por oito anos presidiu a WWF Internacional e é ex-Ministra do Meio Ambiente do Equador. A equipe tem a missão de definir parâmetros de proteção das reservas marinhas e é formada também pela Chancelaria, que tem a atribuição de estabelecer contato com os países da CPPS, enquanto a parte privada buscará avançar a proposta de criação de uma nova reserva, extensão de Galápagos, na região da cordilheira subterrânea de Cocos, ao Noroeste da atual reserva. A cordilheira liga Galápagos às Ilhas Cocos. Isto será realizado a partir do contato com autoridades da Costa Rica. Enquanto isso, o mapeamento da cordilheira subterrânea de Carnegie, que une as ZEEs insular e continental, será realizada pela Armada do Equador.
A formação de novas zonas de proteção podem representar um avanço no controle da pesca IUU, a partir de novas possibilidades de ação pelo governo equatoriano em relação às embarcações de outras bandeiras. Enquanto isso, o amplo curso de ação do governo equatoriano deve continuar pelos próximos meses dentro das OROPs e fora, por meio do contato bilateral com a China e com países latino-americanos.
Por fim, o desenrolar da política de Gallegos pode ter que lidar com outro eixo nos próximos dias, já que no dia 27 de agosto o Secretário de Estado dos Estados Unidos da América, Mike Pompeo, por meio de seu Twitter, se colocou em apoio ao Equador. Ele declarou repúdio às ações de pesca IUU procedidas pelos navios chineses, reafirmando a necessidade da China de prosseguir com uma política de zero tolerância. No entanto, já no dia 2 de agosto, a Secretaria de Estado tinha emitido uma nota à imprensa em apoio ao Equador e ao equilíbrio ambiental da reserva de Galápagos.
O apoio dos EUA pode desequilibrar a Aliança Estratégica do país com a China, tendo em vista as relações um tanto conflituosas entre as duas potências nos últimos anos, com problemas relacionados ao regime marítimo, como na questão do Mar do Sul da China. A entrada dos EUA como um fator deve ser então avaliado pelo Equador, em um momento em que este último de muito depende da China e no qual o foco da política externa de Gallegos, no geral, é a busca pela Aliança do Pacífico.
(1) Enquanto o Peru ainda sustenta a hipótese de um mar territorial de 200 milhas, não mais reconhecida pela CONVEMAR, a Colômbia assinou a Convenção, mas não a ratificou devido à disputa com a Nicarágua pelo arquipélago de San Andreas.