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13 agosto 2020

BR DO MAR: um Programa de Incentivo à Cabotagem

por Carla Adriana C Gibertoni Fregona

Advogada e consultora jurídica, Sócia do escritório Pádua Advogados, Mestre em  Relações Internacionais pela Universidade de Barcelona, Autora do livro Teoria e Prática do Direito Marítimo, Professora convidada em cursos de Pós graduação em Direito Marítimo, Direito Empresarial e Proteção de Dados.


 

No dia 11 de agosto, em caráter de urgência, o governo enviou ao Congresso Nacional, o projeto de lei (PL) conhecido como BR do Mar, que incentiva a navegação de cabotagem – tráfego marítimo entre portos da mesma costa de um país. O texto do PL é fruto de debate entre várias pastas, e deve estimular o transporte de mercadorias internamente e aumentar a competitividade industrial do país.[1]

O projeto visa aumentar a oferta da cabotagem, incentivar a concorrência, criar rotas e reduzir custos. Uma das metas é ampliar o volume de contêineres transportados por ano, de 1,2 milhão de TEUs (unidade equivalente a 20 pés), em 2019, para 2 milhões de TEUs, em 2022, além de ampliar em 40% a capacidade da frota marítima dedicada à cabotagem nos próximos três anos, excluindo as embarcações dedicadas ao transporte de petróleo e derivados.

Após a greve dos caminhoneiros no início de 2018, a navegação de cabotagem foi redescoberta pelo setor produtivo nacional como alternativa mais econômica ao frete rodoviário, e apresentou, na época, um crescimento de 15%. Os números de 2018 foram animadores, com uma movimentação de mais de um milhão de contêineres de 20 TEU (unidade equivalente a um contêiner de 20 pés) entre os portos da costa brasileira[2]. Isso corresponde a mais de um milhão de viagens rodoviárias que deixaram de ser feitas em 2018.

Na China, nos Estados Unidos e em toda parte do mundo, a cabotagem representa de 30% a 35% de tudo que é transportado no país; no Brasil, a cabotagem ainda representava apenas 11%, mas a tendência é de crescimento, até porque, se considerarmos as dimensões continentais,  70% da população do país vive a até 200 quilômetros do litoral.

Apesar do custo do frete de cabotagem chegar a 20% menos do que o rodoviário, ter maior eficiência/pontualidade e segurança, ainda há muita burocracia e altos impostos na manutenção desse modal. Isso acontece porque um navio de cabotagem tem o mesmo tratamento que um navio de longo curso. Isso equivale dizer que um navio que sai do Porto de Santos para o Ceará tem o mesmo tratamento de um navio que vai para Roterdã.

Em termos marítimos, a cabotagem é a navegação feita dentro de um espaço limitado de águas nacionais, definido como a movimentação de embarcações tendo a costa sempre à vista. Isso não significa, necessariamente, trajetos de curta distância, ainda mais se levarmos em consideração o tamanho do litoral. A cabotagem também pode ser internacional, entre países que fazem parte do mesmo continente.

O modal é eficiente e versátil para atender aos diversos setores da economia, afinal os tipos de navios e a forma como cada segmento pode operar na cabotagem são bem diversificados. Existem os navios graneleiros; os dedicados ao transporte de carga solta e de grandes dimensões, conhecidos como Break Bulks; aqueles que exclusivamente fazem o transporte de granéis líquidos, como petróleo, por exemplo; navios específicos para transportar veículos, entre outros.

Fazendo um paralelo, em geral, a cabotagem de containers funciona como uma linha de ônibus regular, com dia e hora para atracar em cada um dos portos. O navio faz um circuito fechado e sempre sai e retorna para um mesmo ponto. Previsibilidade é a palavra de ordem. Isso facilita a logística e organização em embarques e entregas de mercadorias.

A navegação de cabotagem está prevista na Lei nº 9.432, de 08 de Janeiro de 1997, que dispõe sobre a ordenação no transporte aquaviário, sendo reservada sua exploração às Empresas Brasileiras de Navegação (EBN)[3], que podem operar com embarcações próprias ou com navios estrangeiros afretados, que suspendem suas bandeiras e passam a observar a lei brasileira.

O projeto de lei tem como escopo incentivar a navegação de cabotagem através da isenção dos principais tributos federais incidentes sobre a importação de navios e peças de embarcações, o que facilitaria a competitividade e a indústria naval. Mas para a navegação de cabotagem crescer de fato no País, é necessário torná-la tão competitiva quanto o transporte rodoviário de mercadorias. Por isso, a isenção de impostos e uma menor burocracia são caminhos essenciais.

O projeto está fundamentado em quatro eixos fundamentais para incentivar a cabotagem: frota, indústria naval, custos e portos.

Em relação às frotas, o programa estimula as Empresas Brasileiras de Navegação (EBNs) já existentes e dá mais autonomia a elas, garantindo maior controle e segurança na operação de suas linhas, além de desburocratizar o registro e tráfego de embarcações. A previsão é de que a empresa que detém frota nacional poderá se beneficiar de afretamentos por tempo, de navio com bandeira estrangeira, o que possibilita menores custos operacionais. Há a previsão, ainda, de outras hipóteses que permitirão às EBNs afretarem embarcações a tempo: para substituir embarcações que estiverem em reparo ou construção; para atender operações que ainda não existam; e para cumprir exclusivamente contratos de longo prazo. Já os novos players ou empresas de menor porte sem embarcações próprias poderão afretar a casco nu (o navio afretado passa a adotar a bandeira brasileira), sem a necessidade de lastro em embarcações próprias.

O objetivo da abertura para a operação de navios com bandeiras de outros países seria facilitar a entrada de novas empresas no mercado e aumentar a concorrência no setor. Para diminuir custos e aumentar a oferta, a EBN teria a opção de criar uma subsidiária no exterior e afretar os navios dessa empresa estrangeira, preenchendo dois terços da tripulação com brasileiros. O ponto polêmico é que a subsidiária teria registro em países que oferecem as chamadas bandeiras de conveniência, com poucas exigências legais. A incidência de lei estrangeira poderia trazer interpretações divergentes nos Tribunais, em especial em questões trabalhistas.

Para a indústria naval, o governo pretende estimular a docagem de embarcações internacionais no Brasil, o que aumentará o conhecimento em manutenção e a comercialização de peças e maquinários para navios, estimulando a escalonagem da indústria brasileira. A possibilidade de empresas estrangeiras utilizarem os recursos do Fundo da Marinha Mercante para financiarem a docagem de suas embarcações em estaleiros brasileiros é uma ação que, ao trazer maior escala para as operações dos estaleiros, irá beneficiar, também, as EBNs, que hoje utilizam estaleiros na Europa e até na China.

Quanto aos custos, os incentivos recaem sobre as taxas, que devem diminuir, e as regulamentações para diminuir os trâmites burocráticos, acelerando o processo.

Para o eixo relacionado aos portos, além da modernização para garantir o aumento da demanda, a previsão é agilizar a entrada de terminais dedicados à cabotagem. O projeto também prevê a permissão do uso de contratos temporários para a movimentação de cargas que ainda não possuem operação no porto, agilizando a entrada em operação de terminais dedicados à cabotagem.

O fato é que a utilização da cabotagem exige muito menos investimentos em infraestrutura, e tem inúmeras vantagens competitivas e sociais, o que é relevante para qualquer país em crise. Para começar, a cabotagem usa uma via pronta e com capacidade ilimitada, a “BR do Mar”, de quase 10 mil km ao longo da costa brasileira, se incluirmos o trecho até Manaus.

Além disso, é um sistema de transporte menos poluente. Se considerarmos a mesma distância, um navio emite pelo menos quatro vezes menos carbono, por tonelada transportada, do que um caminhão, diminuindo o movimento e o congestionamento das rodovias. Um exemplo acontece no transporte de toras de eucalipto entre o sul da Bahia e Portocel/ES, em barcaças que realizam mais de uma viagem por dia transportando o equivalente a 100 viagens de caminhões tritrem (carreta com três semirreboques) que são retiradas das rodovias (200 viagens de ida + volta)[4].

Outra vantagem econômica é o seguro. Na cabotagem, o índice de acidentes e roubos é muito menor em relação ao transporte rodoviário, o que impacta diretamente no valor do seguro das cargas. Por ser um meio mais seguro, esse modal tende a ter redução de preços na renovação do seguro quando caracterizada a inexistência de sinistros.

Um navio significa quatro mil carretas a menos na estrada. Isso significa menos poluição, menos acidente, menos roubo, menos impacto nas estradas, menos manutenção no asfalto. Olhando por esse escopo, os desafios da cabotagem serão vencidos pelo próprio crescimento do modal. No entanto, as rodovias ainda são supervalorizados e outros modais surgem como alternativas apenas em momentos críticos, como no caso da greve dos caminhoneiros e o tabelamento do frete.

A navegação de cabotagem é uma atividade intrínseca do país. Quanto mais empresas perceberem sua importância e investirem nela, maior será a infraestrutura disponível e a diluição de custos de frete.

 

[1] https://veja.abril.com.br/politica/programa-de-incentivo-maritimo-br-do-mar-e-entregue-ao-congresso/

[2] Segundo a Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem (Abac)

[3] Art. 7º. As embarcações estrangeiras somente poderão participar do transporte de mercadorias na navegação de cabotagem e da navegação interior de percurso nacional, bem como da navegação de apoio portuário e da navegação de apoio marítimo, quando afretadas por empresas brasileiras de navegação (BRASIL, Lei nº 9.432/97)

[4] Em 2018, essa madeira foi transportada em 496 viagens de barcaças, carga equivalente a cerca de 50.200 viagens de tritrem.

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