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07 julho 2020

Medidas internacionais adotadas para o combate à pirataria na Somália

 

A pirataria é um dos mais antigos crimes cometidos no mar e há quase unanimidade no reconhecimento da necessidade de combatê-lo. A pratica é definida como (i) todo ato de violência, detenção ou depredação cometida para fins privados, pela tripulação ou pelos passageiros de navio privado, ou aeronave privada, contra navio ou aeronave ou contra pessoas ou bens a bordo deles em alto mar ou em áreas não submetidas à jurisdição de qualquer Estado; (ii) a participação voluntária na utilização de navio ou aeronave considerado pirata; e (iii) o ato de incitar ou ajudar o cometimento das ações mencionadas anteriormente (artigo 101, CNUDM).

Um estudo feito pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes em 2013 identificou que nas regiões do Quênia, Etiópia e Somália, pelo menos 179 barcos foram vítimas de pirataria, com liberação da carga e da tripulação apenas após o pagamento de resgastes. De acordo com  Wermuth e Correa [1], a posição privilegiada da Somália, situada na “porta de entrada” de uma das rotas marítimas com maior fluxo de bens de consumo no planeta, associada à ausência de uma estrutura governamental eficaz capaz de implementar a lei, a região se configura como um “terreno ideal para o desenvolvimento da pirataria.” Diante dos constantes ataques, diversos organismos de comércio notaram a atmosfera de medo no tráfego na região do Golfo de Aden, localizado entre o Iêmen, Somália e Djibouti[2]

Conforme previsto no capítulo VII da Carta das Nações Unidas, ao averiguar qualquer ameaça à paz e à segurança, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), decidirá sobre as medidas cabíveis a serem tomadas para reestabelecer as relações pacíficas. Dessa forma, em 2008, o Conselho de Segurança da ONU classificou o aumento célere de ataques na costa leste africana como uma ameaça à segurança internacional e, por conseguinte, adotou as Resoluções 1814[3], 1816[4] e 1838[5], que incentivam os países a atuarem ativamente no combate à pirataria na costa da Somália, utilizando os meios necessários, desde que em conformidade com os parâmetros estabelecidos no direito internacional, em especial na Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar. Em 11 de abril de 2013, a Organização Marítima Internacional (OMI) realizou a primeira conferência relacionada à pirataria, contando com a presença do International Maritime Bureau (IMB), organização especializada em ações de combate à pirataria. A Somália foi uma interessada em potencial, tendo em vistas altos níveis de ataques sofridos nos últimos anos, e a preocupação da comunidade internacional das atitudes criminosas se transformarem em grupos terroristas[6].

A partir das ações de cooperação internacional adotadas e das medidas tomadas para minimizar os males provenientes da pirataria, houve uma queda dos ataques desde 2011. O relatório do Secretário-Geral das Nações Unidas, Antônio Guterres, reconheceu que a colaboração de Estados e órgão internacionais foi essencial para esses resultados positivos. Buscando maior progresso, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma Resolução para que a comunidade internacional continue a colaborar para o combate a esse crime. Por fim, secretário geral concluiu que “a pirataria na costa da Somália foi reprimida, mas não erradicada, e continua sendo uma ameaça perigosa para a região”.[7]

A despeito da necessidade de erradicar a pirataria, as medidas de combate também têm gerado críticas sobre possíveis violações de direitos humanos[8] decorrentes da aplicação da jurisdição universal.[9] Por exemplo, em março de 2015, a Suprema Corte de Seicheles condenou nove somalis, um deles menor de idade, por atos de pirataria contra um navio dinamarquês[10] e um navio com bandeira chinesa.[11] No julgamento, o juiz Niranjit Burhan afirmou que em decorrência do conceito de jurisdição universal é permitido a todos os estados a aplicação de sua jurisdição criminal a supostos envolvidos em crimes de pirataria, independente de sua nacionalidade ou país de residência.[12] Ocorre que, no primeiro caso, os indivíduos já haviam sido levados às autoridades dinamarquesas, que os enviaram à Seicheles alegando que, pela legislação dinamarquesa, não haveria possibilidade de condenação. Portanto, restam dúvidas sobre a legalidade do processo de transferência desses indivíduos de um país para outro – já que não se trata de uma extradição ou entrega – e sobre a possível constituição de um fórum shopping que viola o direito de defesa, no qual acusados de crime de pirataria são estrategicamente levados para julgamento em determinados países cuja condenação é certa.

O combate à pirataria é um tema complexo no direito do mar, especialmente por isso é um dos mais antigos. Como vimos acima, o consenso sobre a gravidade do crime e sobre a necessidade de erradica-lo geraram sua codificação na Convenção das Nações Unidas para o Direito do Mar e embasaram as medidas adotadas pelo CSNU e pela OMI. No entanto, a objeção a uma prática não pode ser justificativa para a violação dos direitos humanos e do direito internacional, portanto, são necessários padrões mais claros sobre a utilização da jurisdição universal.

 

[1] WERMUTH, MAIQUEL ÂNGELO DEZORDI; CORREA, R. O direito internacional em face da pirataria em alto-mar: uma perspectiva crítica. Revista de Direito Internacional, v. 12, p. 289-301, 2015.

[2]MACHADO, Geruza. O ataque dos piratas na costa da Somália. 2009. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-64/o-ataque-dos-piratas-na-costa-da-somalia/#_ftn8>. Acesso em: 6 jun. 2020

[3] Resolução 1814. Nações Unidas, 2008. Disponível em : <https://undocs.org/S/RES/1814(2008)>. Acesso em: 1 jun. 2020

[4] Resolução 1816. Nações Unidas, 2008. Disponível em : <https://undocs.org/S/RES/1816(2008)>. Acesso em: 1 jun. 2020

[5] [5] Resolução 1838. Nações Unidas, 2008. Disponível em : <https://undocs.org/S/RES/1838(2008)>. Acesso em: 1 jun. 2020

[6]MACHADO, Geruza. O ataque dos piratas na costa da Somália. 2009. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-64/o-ataque-dos-piratas-na-costa-da-somalia/#_ftn8>. Acesso em: 6 jun. 2020.

[7] Cooperação internacional reduziu ataques e sequestros de piratas na costa da Somália. ONU. Disponível em: <https://news.un.org/pt/story/2019/12/1696691>. Acesso em: 6 jun. 2020.

[8] HANSEN, Thomas Gammeltoft; HANSEN, Jens Vedsted. Human Rights and the Dark Side of Globalisation: Transnational law enforcement and migration control. Routledge, 2016. 366p.

[9] Segundo o artigo 105 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, todo Estado pode apreender, em alto mar ou em qualquer lugar não submetido à jurisdição um Estado, um navio ou aeronave pirata ou capturados por atos de pirataria e em poder de piratas e apreender os bens que se encontrem a bordo desse navio ou aeronave.

[10] Danish Ship – M/V Torm Kansas, Nov. 9, 2013.

[11]  Hong-Kong flagged vessel M/V Zhongji No. 1, Nov. 6, 2013.

[12]  URANIE, Sharon. Eight Somali adults and one minor convicted of piracy by the Seychelles Supreme Court. 2015. Disponível em: <https://www.seychellesnewagency.com/articles/2584/Eight+Somali+adults+and+one+minor+convicted+of+piracy+by+the+Seychelles+Supreme+Court>. Acesso em: 1 jul. 2020.

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