Os refugiados no mar e a negativa de acolhimento sob a égide do COVID-19
Com a crise pandêmica do Covid-19, o foco midiático e governamental voltou-se, majoritariamente, para questões de ordem interna. Contudo, é importante que não se retire a atenção a temas de ordem internacional, como a condição dos refugiados no mar e a negativa de acolhimento sob a égide do coronavírus. Esse cenário engloba proposições de direitos humanos, de direito humanitário, para além de aspectos de solidariedade e de cooperação internacionais.
A título exemplificativo, a problemática da negativa de acolhimento de refugiados devido ao COVID pôde ser visualizada no fechamento de portos italianos determinado até o final do estado de emergência ou ainda, com possiblidade de extensão da medida, enquanto a situação não melhorar. A nova realidade baseia-se em um decreto italiano que dispõe: “Durante toda a duração da emergência sanitária, devido ao surto de corona vírus, os portos italianos não podem ser classificados como “locais seguros “para o desembarque de pessoas resgatadas de barcos que arvoram pavilhão estrangeiro”(1). Em sentido análogo à Itália, Malta também se manifestou oficialmente a recusar receber refugiados durante a situação de pandemia.
Essas medidas restritivas aos refugiados geram como consequências o aumento do risco de fatalidades no mar, visto que os barcos com os migrantes ficarão à deriva , para além de incertezas e indefinições quanto a um possível acolhimento. Como exemplo, em 17 de abril de 2020, um navio pertencente à organização de ajuda marítima SeaEye, que transportava 150 refugiados, aguardava por mais de doze dias para entrar em um porto europeu. Similarmente, de acordo com a organização de resgate no mar Alarm Phone, que acusa o governo maltês de ignorar pedidos de ajuda, 110 pessoas que cruzavam o Mar Mediterrâneo em um barco inflável corriam o risco de afogamento por encontrarem-se há mais de 30 horas no mar (2). Outra embarcação de resgate que enfrenta problemas com as novas medidas italianas e maltesas é o navio de resgate “Alan Kurdi” (em homenagem ao menino sírio encontrado afogado em 2015). Seus representantes afirmam ter tido dificuldades de atuação com gerência de tripulação e medidas de segurança necessárias devido ao Covid-19, que tirou atenção midiática e de fundos dedicados aos refugiados para combater o vírus (3). Essas medidas foram condenadas por diversas Organizações Não-Governamentais (ONGs), como Sea Watch, MSF e Open Arms (4).
Assinale-se que os refugiados são considerados como um desafio adicional à situação pandêmica visto que, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), a superlotação dos campos e as baixas condições de higiene potencializam a proliferação do corona vírus (5). Dessa forma, os refugiados deparam-se com um duplo desafio: antes de chegarem ao país de refúgio são considerados, muitas vezes, como risco ao novo país por serem provenientes de regiões com baixas condições sanitárias e depois, os refugiados que conseguem realizar a travessia também não encontram realidade diferente nos campos de refúgio, ambiente de altíssimo risco devido a alta aglomeração de pessoas, incluindo idosos e crianças, com também baixas condições sanitárias.
Na visão do especialista em migração da União Europeia, Raphael Bossong, do Instituto Alemão para Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP), a restrição de direitos diante de situações pandêmicas é possívele lícita. Todavia “se um navio transportar requerentes de asilo no mar, uma exceção deve ser feita e o navio deve entrar no porto”, diz Bossong (6).
Esse conflito de perspectivas e juízo de valores coloca em questionamento a situação delicada e antiga vivenciada por refugiados em diversos portos europeus. Resta-nos refletir se a crise do coronavírus está a ser usada como uma justificativa plausível para as medidas de fechamento dos portos ou se não está a sustentar desculpas desumanas e posições políticas intolerantes ao acolhimento de pessoas no mar, que comprometem, entre outros, os direitos humanos à vida e à proteção.
Por Júlia Machado Aguiar, estagiária do Instituto Brasileiro de Direito do Mar (IBDMAR), sob supervisão de Fabiana Abreu do Valle Ventura Piassi, Diretora do Instituto.
[1] TONDO, Lorenzo. Italy declares own ports ´unsafe´ to stop migrants arriving. The Guardian, 08 de abril de 2020. Disponível em: <http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/oct/03/immigration-policy- roma-rightwing-europe>. Último acesso em: 13.05.2020.
[2]Malta ignores distress calls from migrants at sea: NGO. DW, 14 de março de 2020. Disponível em: <https://www.dw.com/en/malta-ignores-distress-calls-from-migrants-at-sea-ngo/a-52774016>. Último acesso em: 13.05.2020.
[3]TONDO, Lorenzo. Italy declares own ports ´unsafe´ to stop migrants arriving. The Guardian, 04 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.theguardian.com/global-development/2020/apr/04/migrants-never-disappeared-the-lone-rescue-ship-braving-a-pandemic-coronavirus>. Último acesso em: 13.05.2020.
[4] Messia, Borghese, Braithwaite, Alberti. Italy closes ports to rescue ships, targeting migrants. CNN, 08 de abril de 2020. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2020/04/08/europe/italy-coronavirus-migrants-intl/index.html>. Último acesso em: 13.05.2020.
[5] Coronavírus e refugiados: o que o ACNUR está fazendo no Brasil e no mundo. ACNUR, 27 de março de 2020. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/2020/03/27/coronavirus-e-refugiados-o-que-o-acnur-esta-fazendo-no-brasil-e-no-mundo/>. Último acesso em: 13.05.2020.
[6] Coronavirus crisis hampering Mediterranean migrant rescues.DW, 17 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.dw.com/en/coronavirus-crisis-hampering-mediterranean-migrant-rescues/a-53168399>. Último acesso em: 13.05.2020.