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01 maio 2020

Direito internacional dos trabalhadores marítimos

Por André de Paiva Toledo*

É inquestionável a importância do mar para a humanidade. A partir de inventos os mais fantásticos, o ser humano – um ser terrestre – tem podido avançar mar adentro, conhecendo e aproveitando sua superfície, coluna d’água e fundos. Apenas na última metade do século XX, os intercâmbios marítimos foram multiplicados por sete. Em meados dos anos de 1980, a indústria pesqueira alcançou a marca de 90 milhões de toneladas de capturas. Tudo isso tem permitido uma profunda integração entre os povos, garantindo novas oportunidades e boas perspectivas aos seres humanos.

Contudo, o avanço mar adentro não tem sido feito sem percalços, desafios ou dramaticidades. Neste contexto, pode-se mencionar, por exemplo, a urgência ambiental por conta da poluição marinha e da pesca predatória. Além disso, a integração global entre os povos, por meio do intercâmbio marítimo, não correspondeu ainda à universalização dos elevados níveis de desenvolvimento socioeconômico.

No rol de desafios internacionais ao uso do mar, destaca-se a condição dos trabalhadores marítimos. São mulheres e homens que, a bordo de embarcações, canalizam sua força de trabalho para realizar as potencialidades da tecnologia marinha. Esses trabalhadores se encontram muitas vezes afastados de estrutura de apoio ou socorro, o que torna arriscado o exercício de suas atividades. Diante disso, uma vez embarcados, é necessário que os estudiosos do direito do mar tenham uma atenção especial às condições de trabalho dos marítimos a bordo.

No âmbito do direito do mar, é possível, por exemplo, identificar como obrigação consuetudinária o direito dos trabalhadores embarcados à alimentação, aos cuidados médicos e, em determinados casos, à repatriação. Apesar da existência da dimensão internacional dos direitos trabalhistas marítimos, historicamente, eles têm sido previstos internamente, seguindo o princípio da nacionalidade da embarcação. Em razão disso, não há, a princípio, uma uniformização das garantias mínimas a esses trabalhadores. Tudo dependendo da conjuntura jurídica interna de cada país.

Contudo, a intensificação do processo de globalização das relações econômicas, a partir da segunda metade do século XX, tem propiciado um movimento de certa uniformização dos direitos dos trabalhadores marítimos. As condições de trabalho a bordo tornam-se, cada vez mais, uma preocupação dos que se dedicam ao direito do mar.

Com efeito, já na Convenção de Genebra sobre o alto mar, adotada em 1958 no âmbito das Nações Unidas, o artigo 10 estabelecia que todo Estado da bandeira deveria tomar, em relação às suas embarcações, as medidas necessárias para garantir a segurança no mar, nomeadamente no que dizia respeito à composição e condições de trabalho das tripulações. Em sentido idêntico, o artigo 94(3)b da Convenção de Montego Bay sobre o direito do mar, adotada em 1982 no âmbito das Nações Unidas, determina que o Estado da bandeira deve adotar as medidas necessárias para garantir a segurança no mar, especialmente no que se refere às condições de trabalho, tendo em vista os instrumentos internacionais aplicáveis.

Por ser o Estado da bandeira competente para proteger o trabalhador marítimo em navio de sua nacionalidade, tendo em vista o predomínio do sistema de registro aberto, torna-se muitas vezes interessante ao proprietário registrar sua embarcação em país que lhe imponha menos ônus legislativos, inclusive trabalhistas. O vínculo existente entre embarcação, armador e Estado do pavilhão dá-se assim por mera conveniência. A adoção de “bandeiras de conveniência” corresponde, na prática, à distinção entre a nacionalidade do agente econômico e a nacionalidade do ordenamento jurídico aplicável aos fatos jurídicos ocorridos a bordo. A falta de uniformização legislativa interna permite que os armadores escolham as embarcações sub-normatizadas.

Numa tentativa de uniformizar os direitos dos trabalhadores marítimos, a Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes (ITF), exercendo verdadeira representação sindical, tem buscado pressionar os beneficiários comerciais das embarcações, a fim de assegurar certas condições mínimas de trabalho como, por exemplo, o salário mínimo, independentemente da nacionalidade da embarcação. Apesar da atuação importante da ITF, o mercado de trabalho marítimo continua a ser um caso emblemático de desregulamentação e consequente falta de proteção social dos trabalhadores.

Com intuito de dar amparo jurídico aos trabalhadores marítimos, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tem adotado, por sua vez, diversos instrumentos normativos. Dentre eles, destaca-se a Convenção 147, adotada em 1976, que, em seu artigo 4(1), permite ao Estado do porto realizar o controle das condições de segurança e saúde dos trabalhadores em embarcação estrangeira. Além desta, a Convenção 180, adotada em 1996, dedica-se à garantia da duração máxima da jornada de trabalho e ao direito de descanso dos trabalhadores marítimos. Por fim, menciona-se a Convenção 188, adotada em 2007, relativa às condições mínimas de trabalho decente para pescadores embarcados.

Em 2006, a OIT adotou sua importante Convenção sobre o Trabalho Marítimo que, tendo como base a vedação do trabalho forçado ou obrigatório, a proibição do trabalho infantil e a interdição de qualquer discriminação em matéria de emprego e profissão, garante a todos os trabalhadores marítimos o direito à segurança, à saúde e à proteção social. Além disso, todo trabalhador marítimo deve ser livre para se associar, sendo-lhe reconhecido o efetivo direito de negociação coletiva. Como exceção ao princípio da jurisdição do Estado da bandeira, a Convenção da OIT sobre Trabalho Marítimo prevê, em seu artigo 5(4) a possibilidade de embarcações serem inspecionadas por parte do Estado do porto, a fim de garantir que se cumpram as prescrições convencionais.

Apesar dos inegáveis avanços no desenvolvimento do direito internacional do trabalho marítimo, as péssimas condições de trabalho dos marítimos a bordo persistem como fator dominante, o que priva essas pessoas dos frutos de seu esforço.

 

*André de Paiva Toledo é doutor em direito, professor da Escola Superior Dom Helder Câmara e diretor do IBDMAR.

**A imagem destacada é “Les gens de la mer”, óleo sobre tela de Raymond Wintz (1884-1956).

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