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16 maio 2020

A batalha entre um vírus de 120 nanômetros e navios com centenas de metros

Mesmo em tempos de pandemia, os assuntos relacionados à segurança e aos interesses nacionais, assim como às movimentações de força tendem a seguir o lema “negócios como sempre”. Se o seu inimigo está agindo, também faz sentido agir. E é assim que o novo coronavírus tem tido sucesso em incapacitar alvos muito maiores do que se poderia imaginar. A frota da Marinha dos Estados Unidos da América possui 11 porta-aviões, dos quais dez pertencem a classe Nimitz, com mais de 300 metros de comprimento, capacidade para em torno de 60 aeronaves pousarem – a depender do modelo – e uma tripulação que pode chegar a quase 6 mil pessoas. Eles são uma representação simbólica do poder estadunidense ao redor do mundo.

A vida nestas embarcações é tradicionalmente vulnerável a situações como a atual crise sanitária. Não apenas o sistema de ar condicionado proporciona o espalhar eficaz do vírus, mas também a vida em corredores estreitos, refeições em conjunto com milhares de pessoas, dormitórios e banheiros compartilhados auxilia na propagação. As próprias atividades de manutenção do equipamento, que constituem boa parte dos trabalhos diários, e que envolvem o toque constante, aceleram também o contágio. E o pior, costumeiramente os navios não são equipados com máscaras sanitárias, e o desinfetar de um porta-avião é muito mais complexo, visto que equipamentos e armas podem ser danificados com o uso de álcool e desinfetantes que a sociedade tem usado de forma cada vez mais frequente. Ou seja, o contágio nos navios é favorecido, enquanto a prevenção é quase nula.

É diante desta situação que o porta-aviões USS Theodore Roosevelt (USS TR), que já atuara nas Guerras do Golfo (1990-91) e do Iraque (2003-11) – para mais informações sobre os roteiros desta embarcação neste link –, partiu em janeiro para a implantação de um programa Indo-Pacífico, mas se viu em apuros ao longo dos meses de março e abril deste ano. As análises da Marinha sugerem que o contágio do coronavírus foi realizado a partir de aeronaves que pousaram na embarcação.

Diferentemente dos países, os exércitos têm mais ressalva na divulgação dos dados sobre o número de embarcações e de membros da tripulação infectados pela doença, por motivos de segurança das operações. Porém, no dia 30 de março, o até então Capitão Breet Crozier enviou uma carta para seus superiores urgindo maiores ações. “Não estamos em guerra. Marinheiros não precisam morrer”, escreveu. Crozier seria demitido dias depois, em 3 de abril, sobre a justificativa de que “criou a percepção de que a Marinha não estaria fazendo o seu trabalho, que o governo não estaria fazendo o seu trabalho. Isso não é verdade”, disse Thomas Modly, Secretário da Marinha, que se demitiria dias depois por decorrência da mesma crise.

Atracada na base americana de Guam, na Micronésia, o governo americano negociou a retirada gradual das pessoas, a partir do começo de abril, que ficariam isolados em hotéis, na condição de não encontrar com locais. Enquanto isso, testes progressivos foram realizados no navio, e 700 pessoas ficaram na embarcação para atividades fundamentais e iniciar a limpeza. No dia 1º de maio, os testes revelaram mais de mil casos, e uma morte já havia sido contabilizada. Medidas ainda estão sendo tomadas para o retorno seguro de parte da tripulação do navio e sua volta ao mar, que no desejo do atual Capitão Carlos Sardiello de se unir com o USS Ronald Reagan (USS RR) e o USS Nimitz em uma demonstração de poder.

Estes outros dois porta-aviões também enfrentam atrasos nas datas de partida em decorrência do novo vírus. O USS RR possuiu problemas com 16 casos positivos de membros de sua tripulação ainda durante sua manutenção na base de Yokosuka, no Japão, levando a um atraso de sua partida, assim como a proibição do desembarque da tripulação no Japão, e devem permanecer no navio até novembro, segundo o The New York Times. Já o USS Nimitz teve sua partida dos EUA atrasada devido a procedimentos de quarentena da tripulação, e deve sair entre junho e julho. No entanto, ainda em abril, a Marinha americana informou que 26 embarcações que possuíam casos estavam em portos ou em manutenção. A Marinha ainda assim continuará com discrição sobre quais os navios e sobre os futuros casos.

O USS TR serviu como base para aumentar procedimentos de prevenção em outros navios, como a divisão da tripulação em pequenos grupos operacionais, o embarcar de máscaras e desinfetantes, assim como exercícios de simulação de lockdowns esporádicos.

Outros países possuíram problemas na marinha em decorrência do coronavírus, a exemplo da França. Em meados de abril, mais de 660 membros da tripulação do Charles de Gaule testaram positivo para o vírus, o que compreende 60% do total da tripulação do único porta-avião francês. Sua importância para a atuação geopolítica francesa é, portanto, essencial. A entrada do vírus está associada ao atracar e desembarcar da tripulação por dias na cidade francesa de Brest, onde ficaram livres antes de sua missão no Mediterrâneo, e logo antes da decisão do presidente Macron pela decisão da quarentena, ou através do Chipre, onde o navio também realizou uma parada. De qualquer forma, tanto no caso americano como no francês, se tratou em certa medida da falta de preparação e adequação para o novo cenário do coronavírus.

O problema vai muito além. Os três porta-aviões americanos mencionados tem a função de manter a presença estadunidense nos Oceanos Pacífico e Indico, somando as forças menores já existentes. O USS TR é visto como “a âncora de uma força dissuasora contra os avanços da China no Mar do Sul da China” como colocou a revista Time, e por isso visitava o aliado Vietnam em março, em um encontro que contou com o desembarcar da tripulação como um todo, mesmo com o país já, à época, com 60 casos da nova doença. O Vietnam, assim como outros países do Sudoeste Asiático (a exemplo da Malársia) atualmente disputa com a China por territórios no Mar do Sul da China.

A visita ao Vietnam marca também 2020 como o aniversário dos 25 anos das relações entre os dois países. O cancelamento da visita que tinha como objetivo a contrução de confiança mútua dos países poderia ter o efeito contrário, e em um cenário em que a China pressiona o país asiático, nenhum dos dois aliados via o cancelamento com bons olhos.

Os EUA ainda são inegavelmente a maior fonte de força militar convencional do mundo, e possuem uma marinha dividida e espalhada por todo o mundo. No entanto, o enfraquecimento da Marinha, assim como de outros setores das Forças Armadas americanas, e sua sobrecarga, já que também estão sendo utilizadas para conter os casos de coronavírus no cenário doméstico, causa preocupação do governo.

Com o impacto do coronavírus sobre as forças marítimas dos Estados Unidos, membros do Departamento de Defesa acreditam que seus adversários testarão a dominância americana, principalmente no Pacífico e no Índico. É na busca por mantér negócios como sempre, sem adaptações, que se abre vazão para o aumento da presença da força de outros países – como China e Irã – em áreas de interesse americano e de seus aliados, em um momento em que o emprego da força de forma eficiente será necessariamente mais oneroso ao país. A falta de transparência e de adaptação ao novo vírus trouxe assim problemas ao desempenho e a demonstração de força do país.

Um exemplo foi o divulgado pela 5ª Frota dos EUA no dia 15 de abril, na qual “Onze embarcações da Marinha do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica Iraniana (IRGCN) conduziam repetidamente abordagens perigosas” contra 6 navios da marinha americana no Golfo Persa. Mesmo lutando contra o coronavírus – o Irã já possui mais de 70 mil casos – o país tem buscado mostrar como seus cálculos estratégicos não tem mudado, e a preocupação dos Estados Unidos é a de que estes cálculos evidenciem ações ainda mais perigosas.

Já mostrando o seu potencial em danificar a economia de vários países, o coronavírus se evidencia agora como um obstáculo também para as seguranças nacionais, e uma incógnita nos cálculos de projeção de poder das nações, estes já dificeis e que contam com inúmeras incertezas sobre os adversários. O poder convencional dos EUA ainda é superior a de qualquer outra nação, e é ainda o único país capaz de intervir militarmente em qualquer parte do mundo de forma eficaz, mas essa realidade é atingida em cheio pela pandemia, e resta saber quais as proporções dessa limitação, e qual será a situação da segurança internacional, e do uso de forças marítimas, no mundo pós-coronavírus, e como o Direito Internacional se moldará neste novo cenário.

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