Considerações sobre os impactos do Covid-19 nos contratos de fretamento marítimo
por Carla Adriana C Gibertoni Fregona (@carlafregona)
Advogada e consultora jurídica, Sócia do escritório Pádua Advogados, especialista em Direito Marítimo, Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Barcelona, Autora do livro Teoria e Prática do Direito Marítimo, Professora convidada em cursos de Pós graduação em Direito Marítimo e Direito Empresarial, Membro da Comissão de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro da OAB/ES.
O avanço do coronavírus – COVID 19 vem apresentando impactos significativos na atividade econômica mundial. A pandemia se instalou definitivamente e com ela o caos jurídico. A situação, inclusive, foi declarada como emergencial em vários países do mundo.
O coronavírus Covid-19 está mudando a história da própria humanidade o que o torna um fato suficientemente relevante e imprevisível. Por isso, é importante respondermos algumas questões como: a pandemia é uma hipótese de força maior (artigo 393 do CC)? Ou a pandemia é uma hipótese de alteração de circunstâncias (arts. 317 e 478 do CC)?
Se analisarmos com cuidado, a força maior tem características muito claras, a saber: a imprevisibilidade, a inevitabilidade de sua ocorrência e o impedimento absoluto que veda a execução do contrato firmado entre as partes. Vejam que não se trata unicamente da imprevisibilidade, mas em especial do impedimento, de forma absoluta, da execução do contrato.
Tratando-se de situação imprevisível, mas evitável; ou, de situação imprevisível e inevitável, mas superável quanto aos seus efeitos e incidentes, não constitui força maior.
Claro que há hipóteses em que a pandemia resulta em força maior. São casos como os shows, espetáculos, festas de casamento que foram cancelados pelas restrições da pandemia. Tais eventos não podem reunir inúmeras pessoas, aglomeradas, em tempo de quarentena. Nessas hipóteses, o contrato se resolve e as partes voltam ao estado anterior, sem se falar em perdas e danos.
Mas, se a prestação é exequível, mesmo que de maneira mais custosa ao devedor, não estamos diante da força maior em seu sentido clássico.
No caso do transporte marítimo, organizações internacionais estabeleceram diversos protocolos de segurança para que o trabalho, essencial para a continuidade de abastecimento e giro da economia mundial, seja realizado de forma segura
Por outro lado, fugindo da teoria da força maior, se o contrato nasceu com certa base objetiva, ou seja, determinadas circunstâncias, e tais circunstâncias se alteram por um fato imprevisível, o contrato pode ser resolvido ou revisto. Daí rebus (as coisas) sic (assim) stantibus (estando).
Senso assim, no contrato de transporte marítimo, na maioria dos casos, não há qualquer mudança da base objetiva, uma vez que o transporte é considerado atividade essencial para a garantia do suprimento de mercadorias. A única alteração são as medidas de segurança impostas em áreas portuárias para o embarque e desembarque de mercadorias.
É importante ressaltar que os contratos de fretamento marítimo, na maior parte dos casos, por razões históricas e de mercado, são regidos pela lei inglesa. E, utilizam-se de versões padronizadas. Por isso, vale analisar as hipóteses de ocorrência de quarentena: no porto de carga ou descarga; no navio; e que torne a mercadoria indisponível para o transporte
Para a legislação inglesa, a força maior surge apenas se houver uma cláusula expressa contida no contrato e depende da redação da mesma, que estabelece exatamente quais os requisitos e limitas para a sua caracterização. Muitas cláusulas de força maior são, por exemplo, acionadas no caso de quarentena ou atrasos que duram um certo período de tempo. As partes que pretendem alegar e se utilizar de cláusulas de força maior precisam estar atentos quanto aos requisitos formais, como notificação tempestiva.
Segundo a lei chinesa, entende-se que a força maior opera como uma questão de direito e refere-se a quaisquer circunstâncias objetivas imprevisíveis, inevitáveis e intransponíveis. Isso pode ser relevante no contexto de contratos de construção naval com estaleiros chineses. Certamente ocorreram atrasos causados por medidas governamentais que suspenderam o trabalho com o objetivo de limitar a propagação da infecção.
Outras cláusulas aplicáveis ao caso são “Safe Port”, “Off-hire”, “Sobreestadia” e “Supressão de Escala”.
A cláusula Safe Port estabelece que os portos onde as operações serão realizadas deverão estar disponíveis e acessíveis. Caso um dos portos envolvidos na operação seja colocado em quarentena, haverá potencial exposição e discussões acerca do descumprimento da obrigação. Dependendo da situação em concreto poderá ocorrer encerramento do contrato por frustração (instituto da lei inglesa) ou quebra contratual, este último gerando direito a indenização para a parte prejudicada.
Mas, considerando o que já falamos anteriormente, os portos poderiam ser declarados inseguros (“unsafe port”) já que foi reconhecido o estado de pandemia mundial?
Em algumas cartas como a Baltime (Baltic Time Charter, por exemplo), existe uma proibição expressa do fretador que indica a embarcação a um porto onde a febre ou as epidemias são predominantes. No entanto, quando não existe uma disposição expressa como essa, é provável que haja uma dúvida substancial sobre se a garantia de porto seguro permite a rejeição de um pedido em razão de preocupações com o COVID-19. Casos como esse envolvem questões de fato e direito. Geralmente, a jurisprudência considera riscos de danos físicos à embarcação ou detenção devido a riscos políticos. Em teoria, é possível que um porto seja inseguro se a disseminação de infecção no porto colocar os navios em risco de serem desabilitados por doença da tripulação ou fazer com que os navios que estão no porto sejam barrados ou detidos em outros portos. Tais cenários, no entanto, parecem improváveis na prática: riscos à saúde podem ser evitados se a tripulação tomar as devidas e eficazes precauções. Embora os navios possam estar sujeitos a atrasos de quarentena nos portos subseqüentes, é improvável que eles sejam permanentemente “incluídos na lista negra”, detidos ou apreendidos. Além disso, é questionável se um surto de COVID-19 seria um caso de porto inseguro ou área afetada, e não apenas uma ocorrência anormal.
A cláusula de off-hire, presente nos contratos de afretamento por período, estabelece que não haverá pagamento do aluguel diário devido ao fretador, em caso da ocorrência de indisponibilidade do navio por enquadramento em um dos eventos tipificados na cláusula, sendo a quarentena um deles. Caso o período de indisponibilidade seja demasiada, abrirá possibilidade para que o afretador demande a rescisão do contrato.
A cláusula Supressão de Escalas permite ao transportador não escalar no porto previsto, em caso de necessidade, sendo a quarentena do porto, um destes fatores. Nesta hipótese, a carga não será embarcada, ensejando eventual encerramento do contrato, ou, se a carga já estiver embarcada, o seu desembarque se dará em outro porto, sendo o ônus de reposicionamento do embarcador.
A cláusula de sobreestadia ou demurrage, comum aos contratos de afretamento por viagem, estabelece a obrigação de pagamento (natureza indenizatória) de determinado valor, caso o tempo da estadia real do navio no porto seja superior ao tempo da estadia permitida no contrato. Alguns contratos costumam excepcionar a quarentena na apuração da sobreestadia. Em caso de prolongamento excessivo por conta de quarentena, pode ocorrer o encerramento do contrato por quebra contratual, devendo a parte responsável pela sobreestadia arcar com as perdas e danos sofridas pela outra parte.
É evidente que, assim como todos os setores da economia, há sérios impactos da quarentena nos contratos de fretamento marítimo. A análise deve ser individualizada, caso a caso, com bom senso e prudência, em busca de soluções, sendo em qualquer hipótese o tema polêmico e complexo.