O alto mar como Patrimônio Comum da Humanidade?
Delegações em negociações por Acordo sobre biodiversidade marinha além da jurisdição nacional usaram a expressão para se referir não só aos fundos marinhos, mas ao alto mar e aos oceanos como um todo.
Nas últimas duas semanas de agosto, de 19 a 30, reuniram-se em Nova Iorque, na sede das Nações Unidas, delegações de países e de organizações intergovernamentais e não governamentais de todo o mundo. Foi a terceira sessão, de quatro, da Conferência Intergovernamental para a redação de uma emenda à Convenção das Nações Unidas sobre Direito do mar que verse sobre a conservação e o uso sustentável da biodiversidade marinha em áreas além da jurisdição nacional.
Nesta terceira sessão, as negociações foram baseadas em um esboço de tratado preparado pela presidente da Conferência, Rena Lee, de Cingapura, com o auxílio da Divisão das Nações Unidas para Negócios dos Oceanos e Direito do Mar. No primeiro dia de reuniões, o delegado da Argélia, falando pelo Grupo Africano, notou a ausência do princípio do patrimônio comum da humanidade no esboço, dizendo que “adotar um novo acordo sem tal princípio seria como dar vida a um tratado desta importância sem uma alma” e que “é importante não apenas para a humanidade, mas para o alto mar e para a vida marinha como um todo” [1]. Este ponto de vista fora tomado anteriormente pela delegada da Palestina, que representou o Grupo dos 77 e China, composto, sobretudo, de Estados em desenvolvimento.
Em seguida, o delegado do Malawi, falando pelo Grupo dos Estados Menos Desenvolvidos, afirmou que “a natureza altamente interligada do oceano significa que a destruição de habitats, a acidificação dos oceanos, o aquecimento das águas e a sobre-explotação de recursos em qualquer lugar impactará a todos” e, por isso, continua, “partes do oceano em áreas além da jurisdição nacional devem ser reconhecidas como Patrimônio Comum da Humanidade” [2]. A Tailândia também reiterou tal visão, ao afirmar que o princípio do patrimônio comum da humanidade deve ser aplicado em toda a extensão do futuro tratado. No mesmo sentido, estiveram Filipinas, Índia, Irã e Sudão.
O curioso disso tudo é que o princípio, a priori, somente seria aplicado à Área internacional dos fundos marinhos (e a seus recursos) – e não ao alto mar, ou ao oceano –, como determina o Artigo 136 da Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar. Ainda mais ao ler o Artigo 311 (6) da Convenção, que determina que não deve haver emendas ao princípio básico relativo ao patrimônio comum da humanidade disposto no Artigo 136. É bem verdade que talvez a vedação se refira a emendas que dilapidem o princípio, mas não deixa de levantar discussões.
Tout court, as consequências de se considerar o alto mar patrimônio comum da humanidade, usando-se a mesma normativa aplicada à Área, seriam drásticas. Ao fim e ao cabo, devemos estar diante de um mero instrumento retórico, que não carrega opinio juris consigo, porém, este tipo de discurso certamente eleva as expectativas pelo desfecho da Conferência.
[1] http://webtv.un.org/meetings-events/watch/part-1-38th-meeting-intergovernmental-conference-on-marine-biodiversity-of-areas-beyond-national-jurisdiction-third-session-19-30-august-2019/6074545689001. A partir de 36:05 “…importance of this principle, not only for the humankind, but also for the high seas and marine life as a whole…”. A partir de 36:40 “adopting a new BBNJ instrument without this principle would be like giving life to a treaty of this importance without a soul” (tradução livre nossa).
[2] http://webtv.un.org/meetings-events/watch/part-1-38th-meeting-intergovernmental-conference-on-marine-biodiversity-of-areas-beyond-national-jurisdiction-third-session-19-30-august-2019/6074545689001. A partir de 41:22 “The highly interconnected nature of the ocean means that destruction of habitats, ocean acidification, warming of waters, and overexploitation of resources anywhere will be impacting us all. It is for this fundamental reason the we believe that parts of the ocean in areas beyond national jurisdiction should be recognized as common heritage of mankind” (Tradução livre nossa).
Notícia produzida por Eduardo Cavalcanti de Mello Filho, estagiário do IBDMAR.