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26 agosto 2019

Direito à Deriva: Sobre galões, gafes e galhofeiros

Marco Tura1

Por Marco Antônio Ribeiro Tura

Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo e da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Pós-Doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Doutor em Direito Internacional e Integração Econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Centro Brasileiro de Litígios Econômicos (Grupo Caraíve). Representante do Brasil no Comitê Global de Direito dos Investimentos Internacionais (International Law Association).

 

DIREITO À DERIVA

Sobre galões, gafes e galhofeiros

Há mais de vinte anos escrevi texto que resultou no livro História Institucional do Brasil Real, reimpresso uma vez, mas jamais reeditado. Nele analisei a situação que se consolidava no mundo pós-1989, com a queda do regime soviético, e, enfaticamente, afirmei que a universalização do valor democrático foi acompanhada pela mundialização do fato autocrático.

A multipolaridade, decantada em prosa e verso por certa doutrina idealista como sucessora do sistema bipolar, cedia espaço, em verdade, para a unipolaridade dos Estados Unidos da América que, então, erigir-se-iam à condição de chefia de uma polícia global e subordinariam os países do Sul à condição de soldados regionais.

A decisão por não reeditar o livro tinha sentido já que tudo estava me levando, nos últimos anos, a promover uma revisão profunda e extensa da tese. Isso até que lideranças reacionárias assumiram o poder no Norte.

Aquela tese foi, na ocasião, convertida em um quase axioma.

Jamais imaginei que uma ideologia fosse capaz de moldar o mundo à sua imagem e semelhança. Mas assim o foi com o irracionalismo da “nova” direita norte-americana.

Lamentavelmente, o irracionalismo não se circunscreveu aos limites territoriais dos Estados Unidos da América e, a exemplo de seu projeto de expansão material, a cultura da loucura tem contaminado líderes e atores em todas as partes do planeta em velocidade exponencial.

As falas mais abjetas e absurdas têm sido expostas com níveis de ignorância só comparáveis aos de arrogância, como se fossem reproduções de uma verdade inquestionável só alcançável por profetas portadores de escrituras sagradas.

Em terras e águas brasileiras, o espetáculo mais recente desse movimento avassalador do irracionalismo foi vivenciado nos meses de junho e julho com o episódio dos navios iranianos fundeados no litoral do Paraná à espera de abastecimento e carregamento para seguirem viagem de retorno.

Ao ingressarem no litoral brasileiro, com cargas de ureia vinda do Irã, planejavam carregarem milho e, abastecidos de combustível, zarparem rumo à república islâmica. Isso em junho. Não aconteceu. E lá ficaram cinquenta seres humanos sem poderem desembarcar e sem saberem o que seria de suas vidas e de seus trabalhos.

É que a Petrobrás se recusou a abastecer referidos navios sob o argumento de que constariam em lista submetida às sanções estabelecidas pelo governo do presidente Donald Trump.

Com a  recusa, a estatal petrolífera, segundo argumentaria mais tarde em processo judicial, pretendia preservar-se, impedindo que medidas do governo norte-americano a atingissem, eventualmente bloqueando seus ativos no exterior, sofressem com a queda no preço das ações negociadas na bolsa de Nova Iorque e, no limite, com a cobrança antecipada de dívida no valor de setenta e oito bilhões de dólares.

O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná determinou que a Petrobrás abastecesse os navios. Tal determinação, todavia, foi liminarmente suspensa pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli.

Em parecer encartado ao processo na Corte Suprema, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, sustentou a pretensão da estatal e, ao fundamentar seus argumentos, trilhou a mesma linha do ministro da Relações Exteriores no sentido de que a negativa da estatal militaria em favor da “relação diplomática estratégica” com os Estados Unidos da América.

Disse Dodge, também, para surpresa de muitos, que o combustível poderia vir do próprio Irã, rejeitando a demonstração da singularidade do tipo de produto e pouco atentando para os brutais custos da operação transoceânica.

O presidente da República, Jair Bolsonaro, veio a público para dizer que seu governo estava alinhado com a política externa dos Estados Unidos da América e que faria o que tinha de ser feito para expressar este alinhamento.

A liminar, por fim, foi cassada pelo ministro Dias Toffoli, que acatou os argumentos da empresa afretadora e ainda ressaltou a importância das relações comerciais entre Irã e Brasil, relações que apresentam superávit enorme em favor do Brasil, superior a um bilhão e trezentos milhões de dólares apenas nos primeiros seis meses do ano, especialmente em produtos agrícolas.

Chamou minha atenção, todavia, que o Direito não esteve em primeiro plano justamente quando das cogitações dos operadores do sistema de justiça que, para sustentarem suas posições, claramente apelaram a argumentos de política externa e de economia internacional.

Ora, juridicamente o Brasil está vinculado ao sistema das Nações Unidas e deve obediência às suas determinações.

Assim, sanções estabelecidas pelas Nações Unidas devem ser respeitadas. Igualmente, decisões dos órgãos judiciais das Nações Unidas devem ser acatadas sem tergiversações.

Não havia, como não há, no caso, qualquer sanção determinada pela Organização das Nações Unidas contra o Irã.

Havia, na verdade, uma postura unilateral do governo norte-americano com respaldo em nada além da vontade pessoal de seu atual mandatário, engajado na busca por inimigos externos para desviar a atenção de problemas internos que colocam em risco a continuidade de seus projetos, incluída aí sua reeleição.

De outra parte, havia, como há, decisão da Corte Internacional de Justiça que, atendendo a pedido do Irã, determinou aos Estados Unidos da América que, em respeito ao tratado bilateral de 1955, suspendessem quaisquer sanções que afetassem a saúde da população iraniana e a segurança das aeronaves civis e se abstivessem de bloquear a exportação de medicamentos e alimentos ao Irã; algo em sintonia, aliás, com documento oficial do governo norte-americano que, sob a denominada exceção humanitária, permitia essa exportação.

A Corte tomou essa decisão em outubro de 2018. Bastou sua divulgação para que o secretário de Estado Mike Pompeo anunciasse que os Estados Unidos se retirariam do tratado de 1955. Sem mais.

Os navios iranianos foram carregados e abastecidos e, ao que se sabe, rumaram para o Irã.

O resultado de todo o imbróglio foi o de escancarar uma situação em que autoridades brasileiras se meteram de livre e espontânea vontade, não se sabe se por gafe ou por galhofa.

Mas restou claro que não há mais preocupação com o verniz de juridicidade que davam ao discurso pelo qual sustentam o alinhamento aos desejos pessoais de parceiros ideológicos estrangeiros.

A empresa afretadora alertou, no início, que havia grave risco para os tripulantes, para as demais embarcações e para o ambiente marinho, visto que os navios ficariam ao sabor das forças dos ventos e das águas.

Os navios, felizmente, não ficaram à deriva, ao sabor das forças naturais.

À deriva ficou, contudo, o Direito Internacional.

Todo o progresso civilizacional que representa a subordinação de governos, empresas e indivíduos aos ditames de uma ordem universal está hoje sob risco de soçobrar.

Que os ventos e as águas não nos façam acabar na arrebentação!

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