A crise migratória na Europa
por Marcelo José das Neves
Mestre em Direito pela Universidade Católica de Santos
Professor de Direito Marítimo da Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante
A crise migratória na Europa
Aumenta cada vez mais o número de refugiados e migrantes que tenta chegar à Europa em embarcações superlotadas e perigosas, controladas por traficantes de pessoas. A maioria daqueles que procuram abrigo na Europa foge de conflitos armados e crises humanitárias na África e no Oriente Médio. Para essas pessoas, pagar milhares de dólares para atravessar o mar em uma embarcação frágil, precária e ilegal é praticamente a única opção que lhes resta. A crise na região tem chamado a atenção da comunidade internacional, principalmente após a divulgação das imagens de uma criança síria de apenas três anos de idade encontrada morta em uma praia na costa da Turquia.
Os migrantes e refugiados provenientes do mar não são um fenômeno recente. Ao longo dos tempos, pessoas ao redor do mundo arriscaram suas vidas a bordo de embarcações sem nenhuma condição de navegar em segurança, seja em busca de trabalho, melhores condições de vida ou proteção internacional contra perseguição ou outras ameaças.
A violência no Oriente Médio e no norte da África fez com que muitas pessoas, vítimas dos conflitos desenfreados que desrespeitam regras humanitárias, buscassem refúgio fora da zona de guerra. Para tanto, foram forçadas a abandonar seus lares, deslocando-se por diversas rotas. A crise migratória sem precedentes obrigou os refugiados a se deslocarem para países vizinhos como Turquia, Líbano e Jordânia [1].
Outro destino buscado pelos refugiados são países europeus como Itália e Grécia, cujo acesso é feito pelo Mar Mediterrâneo. Em embarcações frágeis e precárias, estão sujeitos a adversidades climáticas, fome e frio. Muitas vezes, são vítimas de naufrágio e terminam por morrerem afogados.
Em 3 de outubro de 2013, o naufrágio de uma embarcação com centenas de refugiados em Lampedusa, Itália, matou 368 pessoas. Foram 155 sobreviventes, dentre eles, 41 crianças[2]. Muitos outros naufrágios e muitas outras mortes foram registradas durante os anos de conflito.
Desde então, navios de resgate humanitário aumentaram sua presença na região. São navios coordenados por Organizações não Governamentais como a Médicos sem Fronteiras e SOS Mediterranée, e também pela Guarda Costeira italiana, em operações com um objetivo comum: salvar vidas humanas em perigo no mar, um dos pilares fundamentais do Direito Marítimo Internacional.
Após o número elevado de naufrágios, autoridades europeias lançaram várias missões para evitar mortes de imigrantes no Mediterrâneo. A mais importante delas, a Mare Nostrum, durou de outubro de 2013 até o final de 2014, dando lugar a outra menor, a Triton, mais restrita a águas europeias.
A operação Mare Nostrumteve início após o naufrágio de Lampedusa. Conduzida pelo governo italiano, junto à costa da Líbia, teve por objetivos a salvaguarda da vida humana no mar, além da detenção de traficantes de pessoas. Uma verdadeira ação humanitária de busca e salvamento de pessoas em risco no mar.
Apesar de salvar mais de 100.000 pessoas, dentre elas 9.000 crianças, a operação Mare Nostrumsofreu duras críticas diante do custo elevado, algo em torno de 117 milhões de Euros. Foi vista também como um incentivo a mais migrações, já que os refugiados viam certa garantia de sobrevivência diante das ações de resgate[3], e acabou sendo substituída pela Triton, que se limitou a ações de vigilância nas fronteiras. Com um custo três vezes menor que a Mare Nostrum, não teve por objetivo a procura de refugiados e ações de salvamento, apenas fiscalização e controle das fronteiras europeias.
Verifica-se, portanto, que os países bloco europeu priorizaram a proteção das fronteiras externas, tentando impedir a chegada de novos migrantes. A salvaguarda da vida humana no mar foi deixada de lado. Recentemente, esses países estão fechando os seus portos às embarcações de resgate humanitário, gerando uma crise sem precedentes quanto à obrigação de recolhimento dos refugiados.
De acordo com o artigo 98 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar,
todo Estado deverá exigir do capitão de um navio que arvore a sua bandeira, desde que o possa fazer sem acarretar perigo grave para o navio, para a tripulação ou para os passageiros, que: a) preste assistência a qualquer pessoa encontrada no mar em perigo de desaparecer; b) se dirija, tão depressa quanto possível, em socorro de pessoas em perigo, desde que esteja informado de que necessitam de assistência e sempre que tenha uma possibilidade razoável de fazê-lo; c) preste, em caso de abalroamento, assistência ao outro navio, à sua tripulação, e aos passageiros e, quando possível, comunique ao outro navio o nome do seu próprio navio, o porto de registro e o porto mais próximo em que fará escala.
Este dever também é encontrado na Regra 33 do Capítulo 5 da Convenção para Salvaguarda da Vida Humana no Mar (SOLAS), nos seguintes termos:
O comandante de um navio no mar que estiver em condições de prestar ajuda ao receber informação de qualquer origem, informando que há pessoas em perigo no mar, é obrigado a dirigir-se a toda velocidade em seu socorro, se possível informando a estas pessoas ou ao serviço de busca e salvamento que o navio está fazendo isto. Esta obrigação de prestar socorro deve ser aplicada independentemente da nacionalidade ou da condição social destas pessoas, ou das circunstâncias em que elas forem encontradas. Se o navio que receber o aviso de perigo não puder ou, na situação específica do caso, não considerar razoável nem necessário dirigir-se para prestar socorro, o comandante deve registrar no livro de quarto os motivos para deixar de prestar socorro às pessoas em perigo, levando em conta a recomendação da Organização, para informar devidamente ao serviço de busca e salvamento adequado.
Após o recolhimento das pessoas em perigo no mar, a dificuldade passa então ao seu recebimento. Dispõe a Convenção Internacional sobre Busca e Salvamento Marítimo (Search and Rescue– SAR) que os refugiados devem ser entregues em um local seguro. Entende-se assim que obrigação de receber os refugiados cabe ao país em cuja zona marítima ocorreu a operação de resgate, já que devolvê-los ao país de origem configuraria a devolução em local não seguro.
O Alto Comissariado da Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), atribuiu aos Estados costeiros mais próximos da área de resgate a responsabilidade de aceitar o desembarque dos resgatados e de oferecer-lhes abrigo temporário. Isso pode gerar um conflito, já que essa área onde foi efetuado o resgate pode ser mais próxima a outro país que não o Estado responsável pela área SAR, e é um argumento utilizado pela Itália para obrigar Malta a receber os refugiados.
Apesar do conflito, os Estados precisam estabelecer um mecanismo de cooperação para propiciar o recebimento dessas pessoas. Fechar os portos às embarcações de resgate, impedindo o desembarque dos refugiados, como vem ocorrendo principalmente na Itália contraria as regras de jus cogens. Priorizar a proteção das fronteiras em detrimento da vida e dignidade humana, empregando a força para evitar a entrada dos migrantes, em nada contribuiu para o desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário e do Direito do Mar.
[1]BBC. Os países que mais recebem refugiados. BBC Brasil, 12 set. 2015. Disponível em <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/09/150910_vizinhos_refugiados_lk>. Acesso em: 13 ago. 2019.
[2]BBC. Estamos cansados de contar corpos. BBC Brasil, 06 out. 2016. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/internacional-37545788>. Acesso em: 13 ago. 2019.
[3]EURONEWS. Triton europeia incapaz de igualar missão Mare Nostrum. Euronews, 13 ago. 2019. Disponível em: <http://pt.euronews.com/2015/04/23/triton-europeia-incapaz-de-igualar-missao-mare-nostrum>. Acesso em 13 ago. 2019.