Mantendo o Direito na Superfície
Por Marco Antônio Ribeiro Tura
Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo e da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Pós-Doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Doutor em Direito Internacional e Integração Econômica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Centro Brasileiro de Litígios Econômicos (Grupo Caraíve). Representante do Brasil no Comitê Global de Direito dos Investimentos Internacionais (International Law Association).
MANTENDO O DIREITO NA SUPERFÍCIE
A propósito de uma decisão recente da Corte Internacional de Justiça
Talvez porque ensimesmados em nossas dificuldades para estabelecer relações pautadas pela civilidade no âmbito interno, nós brasileiros pouco ou nada nos dedicamos a compreender a relevância de certos eventos ocorridos no ano passado para as relações entre países da Região.
Foi, então, concluído processo na Corte Internacional de Justiça em que controvertiam Chile e Bolívia acerca da saída ao Pacífico, algo que remontava ao século XIX, quando, após guerra a envolver Chile, Bolívia e Peru, iniciaram-se negociações que, em 1904, findaram por entregar o litoral da Bolívia ao domínio do Chile — que, em contrapartida, prestava indenização em libras esterlinas e garantia livre acesso aos portos do Norte.
O processo teve seu início em 2013 com petição da Bolívia dirigia à Corte, afirmando que o Chile teria a obrigação de negociar de boa-fé uma saída soberana ao mar. O Chile rebateu a pretensão boliviana e sustentou que jamais houve recusa em negociar, mas que também jamais se comprometeu a ceder parte de seu território para a soberania boliviana, situação consolidada há mais de cem anos.
Em outubro de 2018, cinco anos após o início do processo, por maioria esmagadora de doze votos, decidiram os juízes da Corte no sentido de repelir o pedido formulado pela Bolívia, reputando-o sem embasamento normativo, seja em tratados bilaterais, seja em resoluções internacionais.
Não desejo discutir o conteúdo da decisão. Importa, para mim, que pensemos acerca do que subjaz a todo o processo em termos filosófico-políticos e teórico-jurídicos, porque as práticas individuais e coletivas, sejam quais forem, ainda quando expressamente neguem, sempre são orientadas segundo concepções quanto ao mundo em que se desenrolam.
A marca distintiva deste litígio é a prevalência de uma certa visão sobre a soberania nacional que, em meu sentir, é incompatível com novas formas de sociabilidade internacional e novos modelos de interação entre indivíduos e Estados.
Em ambos os lados do conflito o que persiste é a ideia de que Estados são detentores de um direito que lhes assegura poder sobre pessoas e coisas quase divino e absoluto; um direito que, de certa maneira, estaria inscrito na origem dos Estados, decorrendo de sua própria existência, como um direito natural.
Ocorre, todavia, que há muito essa noção tem cedido espaço para compreensões mais refinadas e complexas no sentido de que a soberania não é algo que se tem ou se deixa de ter pela só existência dos seres ou pela essência das coisas, mas é uma relação que se desenrola na dinâmica entre sujeitos estatais conforme circunstâncias diversas.
Inexiste, portanto, essa coisa absoluta chamada soberania que daria direitos naturais aos Estados para exercerem poderes incontrastáveis, seja em assuntos internos, seja em temas internacionais, especialmente em se tratando de bens de uso comum dos povos.
Atualmente tem-se claro que, do ângulo fático, é falso o discurso da soberania como direito natural que propiciaria o exercício de um poder absoluto; mas tal discurso é, principal e relevantemente, ilegítimo do ângulo jurídico.
A soberania só há na relação de concertação entre os entes que a postulam, de maneira que um não a ostenta sem que no outro reconheça o título igualmente apto a ostentar a sua qualidade de ente soberano.
Além disso, a soberania reclama, para ser promovida para um, um projeto coletivo de afirmação para todos, chegando ao ponto de ser compartilhada para ser preservada em seu núcleo fundamental, ainda que restrita perifericamente, aqui estando a matriz dos processos de integração regional.
A concepção de que a soberania é uma qualidade emergente de uma relação, de interações, conduz à constatação de que a soberania é sempre dever, pautado nas legalidades internacional e constitucional e orientado para o desempenho de certas funções nos âmbitos externo e interno em favor da promoção de valores superiores aos desejos dos ocupantes de postos no Estado e dos interesses do mercado.
A decisão da Corte Internacional de Justiça sobre a demanda ente Chile e Bolívia não resolve o problema, embora ponha termo, em sentido etimologicamente próprio, fixando limites para atuar a normatividade. Para além disso, a questão é política e, como tal, espero, não se expresse por outra forma que não seja a da diplomacia.
O que me parece digno de destacar aqui é que, mais do que nunca, a solução das questões regionais está entregue aos atores regionais, cujos comportamentos devem ser orientados por espírito de construção do entendimento e não pela busca do êxito, à consecução de objetivos conjuntos e não individuais, como possível se mostrou em outro evento do ano de 2018, tão ou mais sonegado do grande público.
Enquanto entre Chile e Bolívia corria o processo na Corte, Argentina, Uruguai, Paraguai, Brasil e Bolívia firmaram acordo em que parece presente o traço de uma lógica diversa, inclusiva, em que se propõe o desenho e o desempenho coletivo da soberania.
O acordo envolve esforços dos quatro países para a concretização de estruturas que permitam a saída de embarcações bolivianas ao Atlântico.
Ambientalmente contestado e economicamente criticado, o acordo tem por objeto a realização da hidrovia Paraguai-Paraná e é, por certo, uma das iniciativas mais interessantes na Região e, em minha opinião, vem na linha da reafirmação de que lidar com bens internacionais, como rios, mares e oceanos, não pode ser tarefa entregue ao humor deste ou daquele Estado, deste ou daquele indivíduo ou ser deixado ao sabor das circunstâncias de processos judiciais ou arbitrais.
Em verdade, é questão política que exige participação democrática intensa na sua formulação e na sua implementação, com a clareza necessária de que, como direito difuso, o direito ao desenvolvimento de uma coletividade estatal, do povo que lhe dá sustentação e legitimação, não se afirma com a supressão do desenvolvimento dos demais.
O comportamento egoísta, de indivíduos ou de nações, cobra, mais cedo ou mais tarde, seu preço e, invariavelmente, é altíssimo.
Nesses tempos bicudos, penso que o mérito maior da decisão da Corte Internacional de Justiça está justamente em não resolver o problema real subjacente à demanda e, assim, declarar as limitações do Direito e as potencialidades da Política.
Fora do diálogo, ao final só há frustração; mesmo para os vencedores!