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15 julho 2019

(In)tolerável insignificância

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Por Larissa Coutinho

Doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília – UnB
Professora Voluntária na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília – UnB

 

(In)tolerável insignificância

Em se tratando de dano no meio ambiente marinho, existe um limite do que é aceitável? Um parâmetro que comporte o razoável?

 

Grandes derramamentos de óleo nos oceanos são uma fonte conhecida de poluição e diversos aparatos normativos existem tanto para evitar o seu acontecimento, como para responsabilizar seus causadores. Entretanto, tais derramamentos correspondem a apenas 12% da contaminação de óleo nos oceanos. Os demais 88% são ocasionados por fontes difusas, como pequenos vazamentos durante a extração de petróleo, operações ilegais de limpeza de tanques no mar e escapes de combustíveis de embarcações. [1]  Todos poderiam se enquadrar em danos insignificantes.

Partindo do ordenamento brasileiro, não há um conceito jurídico formal de dano ambiental. Consequentemente, tampouco há uma definição de dano ambiental ao meio ambiente do mar. Sabe-se, entretanto, que a maioria dos julgados nacionais o relacionam a um tipo específico de dano: a poluição. O termo poluição está contido na Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81) e, está relacionado à degradação, um conceito abrangente que inclui qualquer alteração adversa das características do meio ambiente. Importante frisar, contudo, que nem toda degradação acarretará necessariamente em poluição. Ou seja, enquanto poluição estará sempre relacionada à definição de dano ao meio ambiente, degradação não.

O limite de tolerabilidade é o termo associado à degradação que não cause ou venha a causar um dano ambiental. Trata-se de um conceito desenvolvido a partir da noção de que toda atividade humana, via de regra, causa alguma alteração no meio ambiente. A definição tem origem também na percepção paradoxal do choque que existe entre dois direitos: o do desenvolvimento econômico e da livre iniciativa e o da garantia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. A conservação do meio ambiente não pode ser um direito absoluto porque confronta diretamente com outro direito fundamental, o da livre iniciativa, relacionado ao desenvolvimento econômico. Não havendo hierarquias entre os preceitos básicos, ambos são essenciais e devem servir de fundamento para a elaboração, aplicação e interpretação das leis.[2] Ambos devem coexistir harmoniosamente.

Portanto, não será toda alteração adversa das características do meio ambiente marinho que ensejará o dever de reparar da responsabilidade civil ambiental. Há um limite, o qual se convencionou chamar de limite de tolerabilidade. Mas quem é o responsável por estabelecê-lo, uma vez que a lei não o faz? Frente a lacuna normativa e a inafastabilidade de apreciação do Poder Judiciário, a resposta deve surgir caso a caso.  E como bem se sabe, o problema da análise casuística é que a decisão pela existência ou não de dano fica a cargo da subjetividade de cada julgador [3]. Justamente nessa esteira, surgiu a aplicação indevida do princípio da insignificância em matéria de responsabilidade civil ambiental por pequenos derramamentos e despejos em ambientes marinhos.

Uma pesquisa nos sistemas de busca dos tribunais federais regionais mostrará que não existem muitos julgados que tratam da aplicação do princípio da insignificância na responsabilidade civil ambiental. Porém, dos 12 (doze) casos encontrados que envolvem a sua utilização em danos causados ao meio ambiente marinho – Apelação Cível nº 460716 (200881000044769), nº 518839 (00058661120104058100), nº 366690 (02035494619944036104), nº 10365 (200981000159504), nº 486495 (200781000139934), nº 0205453-77.1989.4.03.6104, nº 0008838-65.1999.4.03.6104, nº 1625118 (00046439520034036104), nº 571558 (200981000159498), nº 572679 (00036264920104058100) e Embargos Infringentes nº 366690 (02035494619944036104) – 8 (oito) foram favoráveis. Do mesmo modo, em um primeiro momento, apenas o TRF5 admitia a aplicabilidade da insignificância em sede de responsabilidade civil ambiental, mas, depois de 2012, os casos no TRF3 foram cada vez mais comuns.

O princípio da insignificância tem sua origem no Direito Penal e retrata as situações em que a conduta do agente, em que pese ser formalmente típica, ocasionou uma lesão ínfima, considerada desprezível, ao bem jurídico tutelado. A aplicação do princípio da bagatela afasta a tipicidade material, tornando o fato atípico. Ao se importar este conceito para o Direito Ambiental, para a seara da reparação civil por danos ambientais ocasionada ao meio ambiente do mar, principalmente com origem em embarcações, a insignificância tem como consequência o reconhecimento do dano como um dano existente, mas não reparável. Isenta-se o causador da poluição do dever de reparar porque formalmente considera-se que o derramamento ocorrido não ultrapassou os limites de tolerabilidade.

Do mesmo modo, segundo a jurisprudência pacificada, a aplicação do princípio da insignificância deve ser precedida de um exame criterioso, feito caso a caso. A análise deve observar três condições para a sua aplicação: 1) reduzido grau de reprovabilidade e mínima ofensividade da conduta; 2) inexistência de periculosidade social do ato e; 3) inexpressividade da lesão provocada. Ademais, deve-se observar as condições subjetivas da vítima. Por exemplo, no âmbito penal, o fato da vítima ser pessoa idosa, pobre e analfabeta poderia vir a afastar o reconhecimento da bagatela.

Em uma analogia, o meio ambiente poderia ser equiparado a vítima vulnerável, impedindo a aplicação do princípio da insignificância. Como se sabe, o direito estabeleceu uma natureza complexa para o meio ambiente: bem jurídico autônomo, que se constitui como um “macrobem” imaterial, difuso, indisponível e que não se confunde com os bens corpóreos que o integram[4]. Mesmo sem ser explicitamente considerado um direito fundamental, com o advento da Constituição Federal de 1988, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado ascendeu a uma nova categoria jurídica, constituindo-se direito de todos e bem de uso comum do povo e desempenhando função essencial à sadia qualidade de vida.

A imputação de responsabilidade civil ambiental tem como objetivo principal a reparação da qualidade inerente aos elementos naturais, indispensáveis ao equilíbrio ecológico, sem o qual se compromete a sobrevivência desta e das futuras gerações. Desta forma, em uma analogia com os critérios de afastamento da aplicação do princípio da insignificância em matéria penal, o meio ambiente deve ser reconhecido como vulnerável e gozar das proteções devidas.

O que se percebe é que o dano ambiental, principalmente o dano ambiental marinho, não deve ser analisado apenas em seus efeitos atuais, visíveis e perceptíveis, sem uma preocupação das possíveis repercussões futuras e desconhecidas[5]. Foi precisamente por isso que o direito brasileiro estabeleceu instrumentos, como a reparação prioritária in natura, a responsabilidade objetiva e a solidariedade passiva, para que na esfera civil a reparação ambiental fosse ampla e efetiva. Portanto, em ecossistemas sensíveis e cientificamente incertos como os mares, não seria um exagero afirmar que toda insignificância não deve ser tolerada.

 

[1]OECD. The Ocean Economy in 2030. Paris: OECD Publishing, 2016, p. 96.

[2]GERENT, Juliana. Internalização das externalidades negativas ambientais: uma breve análise da relação jurídico-econômica. Revista de Direito Ambiental, v. 44, out/dez 2006, p. 44.

[3]SOUZA, Maria Cláudia da Silva Antunes de. Reflexões sobre o limite de tolerabilidade e o dano ambiental.Revistas Jurídicas, v. 10, nº 1, jan/jun 2013, p. 72.

[4]STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade Civil Ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito civil brasileiro. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 120.

[5]DAMIN, Daniele; HENKES, Silviana L. A reparação civil dos danos ambientais ante a hipossuficiência do degradador. Espaço Jurídico, Unoesc, v. 6, n. 1, jan./jun., 2005, p. 55-72.

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