A política australiana de detenção offshore de solicitantes de refúgio
A atual política australiana de triagem dos solicitantes de refúgio que chegam ao país pela via marítima tem sido alvo de duras críticas da comunidade internacional. Segundo dados da organização Anistia Internacional, o processo é baseado no envio dessas pessoas para centros de detenção fora da Austrália, notadamente nas Ilhas Manus, em Papua Nova Guiné e em Nauru. Nesse último, o número de refugiados já chega a aproximadamente 1159 pessoas, o que representa um aumento de cerca de 10% na população do Estado micronésio.
Tal procedimento não é novo, entretanto, desde 2012 o governo da Austrália o tem tornado mais rigoroso. Em agosto de 2012, foi introduzido um regime no qual qualquer solicitante de refúgio que chegasse a um território australiano externo, como as Ilhas Christmas ou as Ilhas Cocos, ambas no Oceano Índico, seriam detidos e encaminhados para um centro de processamento de refugiados em Nauru ou em PNG. Em 2013, o legislativo australiano promulgou nova lei que estendeu a detenção offshore para qualquer pessoa que chegue ao território da Austrália por barco, o que implica na impossibilidade de solicitar refúgio no país e na transferência para centros de detenção offshore.
Caso MV Tampa
O atual cenário ratifica a postura adotada pelo Estado australiano no pragmático caso envolvendo o navio norueguês MV Tampa. Em agosto de 2001, autoridades australianas solicitaram ao referido navio que resgatasse um grupo de pessoas que se encontrava em uma embarcação de pesca que estava afundando ao longo da costa das Ilhas Christimas. Foram resgatadas 433 pessoas, de nacionalidades afegã, iraquiana e paquistanesa, que requereram refúgio à Austrália.
O Departamento de Imigração australiano, porém, proibiu o desembarque dos requerentes no porto das Ilhas Christmas, o mais próximo do incidente, e solicitou à Nova Zelândia, à PNG e à Nauru que recebessem os 433 solicitantes de refúgio. Após inúmeros processos e um incidente diplomático entre Camberra e Oslo, o caso foi objeto de análise do Pleno da Corte Federal australiana, que aceitou a argumentação do Estado. Dos 433 solicitantes de refúgio, 132 receberam status de refugiados na Nova Zelândia, a outra parte foi transferida para Nauru, onde permaneceram em centros de detenção.
Análise jurídica
O atual cenário no maior país da Oceania põe em destaque uma antiga questão envolvendo o Direito do Mar e os Direitos Humanos: existe no ordenamento jurídico internacional uma garantiria para aqueles requerentes de refúgio que se lançam ao mar, que vincule sua entrada no território de um Estado soberano? Um “Direito de Desembarque”?
Primeiramente, é importante fazer a análise de alguns documentos internacionais que trazem importantes conceitos para a questão. A Convenção Internacional sobre Busca e Salvamento Marítimos (SAR, 1979) adota o seguinte conceito de “salvamento”: “uma operação para resgatar pessoas em perigo, prestar-lhes o atendimento médico inicial e atender a outras necessidades e levá-las para um local seguro”.
De acordo com o documento “Guidelines Rescue at Sea”, compilado pela Organização Marítima Internacional (IMO) e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), um local seguro seria um lugar onde a vida e a segurança da pessoa resgatada não estaria mais em risco, onde suas necessidades básicas pudessem ser atendidas e opções de transporte para o destino, próximo ou final, do resgatado possam ser organizadas.
O mesmo documento também traz a questão do non-refoulement, ao declarar que o desembarque de solicitantes de refúgio resgatados em territórios onde suas vidas ou liberdades sofram ameaças deve ser evitada.
Analisando esse mérito, a respeito do que seria um local seguro, o ACNUR, através do documento “Problemas Relacionados ao Resgate de Solicitantes de Refúgio em Perigo no Mar”, afirma que o desembarque de pessoas resgatas no mar deve acontecer, normalmente, no porto seguinte mais próximo. A agência afirma que tal medida, por tempos, foi considerada óbvia, portanto, sem necessidade de ser incorporada formalmente às obrigações internacionais dos Estados.
Ainda, defende que em casos de inflúxo em larga escala, as pessoas que procuram refúgio por via marítima devem ter o direito de fazer o desembarque, para ao menos, receber abrigo temporário. O ACNUR argumenta que caso ocorra o aumento do fluxo de desembarques no país, e esse não possuir condições geograficas de recebê-los, deve receber imediata assistência de outros Estados, de acordo com o princípio da repartição equitativa dos encargos.
Essa claramente não é a situação da Austrália. O país é o sexto maior do mundo em extensão territorial, com uma população que não supera os 25 milhoes de habitantes, sua economia é a décima terceira maior do mundo e, segundo o jornal Washington Post, nāo enfrenta recessões a 25 anos.
O direito ao salvamento e posterior alocação em um local seguro, trazido pela SAR, se complementa com o princípio do non-refoulement, consagrado como jus cogens no Direito Internacional. Esse princípio, trazido na Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, estabelece que “nenhum dos Estados Membros expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas”.
Segundo a Anistia Internacional, a Austrália viola esse princípio ao deportar os solicitantes de refúgio que chegam ao seu território para Nauru. Primeiramente, porque o non-refoulement obriga o país a realizar um julgamento caso a caso, em todo processo de deportação, para verificar se existem riscos reais para a pessoa no local ao qual ela será mandada. Em segundo lugar, ao chegar em Nauru, os solicitantes de refúgio são mantidos arbitrariamente em detenção por períodos indeterminados, sendo expostos a inúmeras violações dos seus direitos e garantias fundamentais. Segundo reportagem do jornal The Guardian, os requerentes são comumente violentados, psicologicamente e sexualmente, quadro que é agravado pela cultura de impunidade do Estado insular.
Em reportagem intitulada “Nauru: a Baía de Guantánamo da Austrália?”, a rede de televisão Al Jazeera entrevistou Evan Davis, professor australiano que lecionou no campo de refugiados em Nauru: “O acampamento inteiro foi criado assim… criado para quebrar o seu espírito, para desumanizar as pessoas, para moer-los no chão, e eu assumo, a incentivá-los a voltar… O acampamento inteiro foi criado para quebrar o espírito das pessoas, para causar trauma”.
O depoimento reforça a tese trazida pela Anistia Internacional de que o processo de triagem offshore de solicitantes de refúgio da Austrália é usado para desencorajar que mais pessoas tentem requerer refúgio no país.
A Organização das Nações Unidas, através do Alto Comissáriado de Direitos Humanos, afirma que muitos dos solicitantes de refúgio e os já refugiados que se encontram em Nauru, incluindo crianças, sofrem graves problemas de saúde mental, consequência da detenção e da situação de extrema incerteza. Recentemente, a ONU defendeu que Austrália e Nauru devem pôr fim ao processo offshore de detenção de solicitantes de refúgio.
Desde modo, a Austrália ao enviar solicitantes, que chegam via marítima, para centros de detenção offshore, nos quais, é de amplo conhecimento, a ocorrência de inúmeros abusos e violações a direitos e liberdades fundamentais, descumpre suas obrigações internacionais relacionadas à condução de resgatados do mar e de solicitantes de refúgio para local seguro.